‘No Ar’ aposta na experiência sensível

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Fotos: Caroline Bittencourt

por Marina Suassuna.

É aparentemente óbvio pensar que um festival de música só se sustenta pela grade de artistas, o carro-chefe de qualquer evento do gênero. No entanto, a dinâmica que um festival é capaz de proporcionar perpassa vários outros fatores nem sempre explícitos. Entre eles, estão as trocas e as convivências estabelecidas no local, e a maneira como o público irá se relacionar com o espaço, que se tornam tão importantes quanto uma programação bem construída, interferindo, diretamente, nos processos de percepção e fruição da música.

Na Grécia, os festivais sempre aconteceram nos meses de verão em espaços abertos, teatros antigos ou instalações especialmente criadas em lugares que oferecessem um prestígio do ponto de vista histórico e estético. É aí que reside parte da engrenagem de um festival que privilegia, para além das questões logísticas, os efeitos sociais. O No Ar Coquetel Molotov, que chegou a sua 11ª edição no último sábado, e pela primeira vez foi realizado num local a céu aberto (na Coudelaria Souza Leão, na Várzea) preencheu grande parte do vazio que habita o Recife no que diz respeito a experiências diferenciadas no campo da música.

A renovação de um festival que já faz parte do calendário turístico-cultural da cidade, com um público fidelizado, somado ao histórico bem sucedido de shows que ficaram na memória musical-afetiva dos recifenses é, no mínimo, excitante. O entusiasmo dos que chegavam à Coudelaria Souza Leão era notório. Era possível ouvir comentários de pessoas que diziam não conhecer nenhum dos artistas da grade, mas assim mesmo foram ao festival por curiosidade, para conhecer a proposta. De fato, a maior atração desta edição do No Ar foi o local escolhido. Houve quem chegasse mais cedo, em plena luz da tarde, de bicicleta, para desfrutar da imensa área verde e do pôr-do-sol.

Enquanto os shows da programação principal aconteciam num pavilhão interno, na área externa eram oferecidas uma feira cultural com estandes de marcas e grifes locais, uma edição especial do Som na Rural de Roger de Renor, a tenda eletrônica da Red Bull Music Academy (RBMA Stage), onde se apresentaram, a partir das 15h, DJs como o britânico Bok Bok e o norte-americano Falty DL. Além disso, havia opções de bar e gastronomia com preços acessíveis. Quem chegou mais cedo, ainda pôde conferir performances de coletivos e artistas visuais da cidade. Tudo isso serviu como estímulo para a aproximação de um público heterogêneo, com as mais diversas motivações. Quem tentou conferir a maior parte das apresentações, sentiu o peso da maratona e, com certeza, se viu obrigado a privar-se de outros atrativos que aconteciam simultaneamente, tendo em vista a curta duração dos intervalos entre um show e outro, que aconteceram pontualmente devido à agilidade da produção na troca de palco.

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Foto: Flora Pimentel

Se tem uma apresentação que poderá ser lembrada daqui a uns anos é o de Karina Buhr cantando o cultuado e homônimo disco dos Secos e Molhados. O show parece ter causado ainda mais expectativa no público após o cancelamento há seis meses, na programação do Abril pro Rock, por problemas de agenda da banda. Tanto é que foi o show que mais gerou empatia no público desta edição, atraindo o maior número de pessoas em relação às demais apresentações. Até Karina entrar no palco por volta da 0h, mostrando-se bastante confortável na interpretação do disco, as pessoas encontravam-se dispersas durante as apresentações.  O comportamento delirante e transgressor da cantora, além da presença cênica ousada e libidinosa (assim como a de Ney Matogrosso) foi, sem dúvida, o que realçou uma programação até então carente de pontos altos, em alguns momentos apática. Sua banda, formada por nomes de peso como o guitarrista Fernando Catatau e o trompetista Guizado, executou o álbum na íntegra e com bastante propriedade, como se fosse seu. Karina estava em casa e não precisou se esforçar para explorar o apelo político e performático do álbum, tamanha é a semelhança com a sua postura no palco. Foi catártico.

Antes dela, Flora Mattos representou bem o hip-hop feminino, gênero que vem se consolidando cada vez mais no Brasil. Assim como Karol Conká na edição anterior do festival, Flora fez bonito com sua rima certeira, cativando o público logo no início, ao reverenciar a música nordestina, executando um repente munida de um pandeiro. Um show simples, na estrutura DJ e MC, mas cheio de carisma.

Outro bom momento do festival foi o show da banda francesa La Femme, que executou o repertório de seu último disco, Psycho tropical Berlim,lembrando bastante a sonoridade e a postura de bandas setentistas e oitentistas, como Joy Division e seus remanescentes da New Order. O clima nostálgico era ainda mais reforçado pelos três sintetizadores que compunham a formação inusitada da banda, que ainda contava com dois bateristas e um guitarrista. As batidas do grupo fez do show um dos mais dançantes desta edição, assim como o do paraense Jaloo e sua dupla de bailarinos, que se não tivessem aberto a programação, com um público tímido que ainda chegava na Coudelaria, teriam obtido maior repercussão com seu brega pop instigante.                  

Facilmente esta edição do Coquetel Molotov será lembrada daqui a alguns anos, não exatamente pelos shows, que apesar de bem executados, passaram longe de ser memoráveis, – com exceção de Karina Buhr – mas como um divisor de águas, ao projetar um outro imaginário em torno do conceito de festival de música no Recife, que vem se mantendo refém de formatos engessados, quase sempre acomodados em velhas estruturas de concreto. O No Ar 2014 trouxe ainda a ética que pautou festivais antológicos, como o de Woodstock, em 1969, ao privilegiar práticas sociais e ambientais, como por exemplo, a mobilidade (que contemplou não só os carros particulares, mas as bicicletas e transportes coletivos) e a adoção do Meu Copo Eco, que substituiu copos descartáveis e latinhas, reduzindo o desperdício e a quantidade de lixo produzido. Ao encorajar e arriscar novas máximas que contribuem para a renovação e vitalidade de nossa vida cultural, o Coquetel Molotov 2014 também se tornou relevante na reorganização e ressignificação do espaço urbano. Tudo em prol da música e das experiências que envolvem aquele universo. A sensação que fica é de quanto a música é capaz de alimentar nossa convivência social.

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Marina Suassuna Escrito por:

Jornalista, estuda na Pós-Graduação em Fotografia e Audiovisual na Unicap. É repórter da revista Outros Críticos e colabora nas revistas Continente e Cardamomo.

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