O show business de cada dia nos dai hoje

 por Karol Pacheco.

Nem tudo é folia. Enquanto uma gorda fatia do show business é controlada por órgãos públicos através de práticas questionáveis, uma multidão de artistas que vive da música, apenas sobrevive dela.

Há mais de 65 anos, Theodor Adorno e Max Horkheimer criaram a expressão “indústria cultural”, cuja ideia central aponta que, no capitalismo, a cultura tende a ser tratada como mercadoria. Leonardo Salazar, empresário artístico e instrutor setorial de cultura do Sebrae, considera que a atividade musical é capaz de gerar trabalho e renda para muitas pessoas. Ele é autor do livro Música Ltda: o negócio da música para empreendedores. O consultor costuma dizer que talento sem gestão é apenas diversão. “Se o músico tem apenas talento, não tem nada. Mas imagine o contrário, artistas que não têm talento, mas que possuem uma gestão eficiente. Esses artistas têm uma carreira! Afinal de contas, de quem é a carreira?

O governo não está nem aí para você, o problema é seu, resolva!”, explica Salazar, lembrando que o caminho para uma trajetória de sucesso passa pela iniciativa do próprio músico, além da busca de oportunidades e redes de contato. Para se estabelecer no mercado é preciso mais que amor à música. O músico Rodrigo Caçapa, compositor, arranjador e produtor musical pernambucano, afirma continuar produzindo a música que acredita. Ao mesmo tempo, ele diz que procura “parceiros que acreditem nessa música e que contribuam pra que ela alcance o seu próprio público, no Recife, em São Paulo, na Argentina ou no Japão”.

“O Quarteto Olinda é uma banda que toca mais fora de Pernambuco do que aqui dentro. Muito disso devemos à nossa produção independente […]” – Cláudio Rabeca

Uma das poucas bandas a apostar no mercado real, com shows bancados por bilheteria, sem recursos públicos, é o Quarteto Olinda. Cláudio Rabeca, cantor, compositor e rabequeiro do grupo, assume que viver de produção independente é viver driblando dificuldades. “O Quarteto Olinda é uma banda que toca mais fora de Pernambuco do que aqui dentro. Muito disso devemos à nossa produção independente e ao ‘investimento’ que fazemos no Forró do Xinxim da Baiana (casa de shows em Olinda), de lá saíram a maioria de nossas turnês internacionais, pois o Xinxim é nossa vitrine, as pessoas nos veem tocando lá, no máximo de nossa verdade e acreditam que podemos agradar em qualquer lugar do Brasil ou do Mundo”.

“É preciso que o Estado pare de ser mãe do artista”, aponta Sergio Valença Pezão, que em mais de 25 anos de estrada acompanhou artistas consagrados como Alceu Valença, Lenine e Chico Science & Nação Zumbi pelo Brasil afora. “Sou de uma época que os cachês eram mais baratos. Fazíamos shows em clubes e a gente divulgava o trabalho, com ou sem a ajuda de uma gravadora”, declara. O produtor musical conta uma história que aconteceu com Alceu Valença, seu primo, em meados da década de 80: “Alceu foi desprezado e colocado contra a parede pelas gravadoras, que tentaram obrigá-lo a gravar Michael Sullivan. Ele não aceitou, disse que não ia gravar. No entanto, ele foi atrás dos shows dele. Ele já tinha um nome e foi procurar os seus espaços”, diz Pezão, contando um episódio no qual o autor de “Bicho Maluco Beleza”, com um megafone à mão no calçadão de Copacabana, chamou seu público e conseguiu lotar o Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro. Pezão coordenou por oito anos o principal palco do Carnaval do Recife, o polo do Marco Zero, patrocinado pela gestão municipal. Um megaevento desse tipo, com programação de grande porte, se transformou, como afirma o músico Caçapa, “num grande Rec-Beat genérico, com muito dinheiro investido num período curtíssimo, com processos e critérios de seleção questionáveis e com tratamento muito desigual entre os artistas”.

Ao fim e ao cabo, é o poder público ou a iniciativa privada a partir de fundos públicos – centros culturais de bancos financeiros, inclusive – que decidem quais os artistas a serem apoiados e qual o circo que o povo vai assistir. Essa falácia de levar a cultura ao povo é contrariada por iniciativas como o Programa Cultura Viva, criado há dez anos pelo Ministério da Cultura (MinC). As ações do programa invertem a lógica habitual, que coloca o povo como receptor de cultura. Ao criar Pontos de Cultura em comunidades tradicionais, apoia-se a cultura que delas emana. As manifestações espontâneas e tradicionais dão sentido, por exemplo, ao carnaval multicultural apregoado pela administração pública e visitado por turistas de todo o mundo. Todavia, são justamente essas que “acabam por receber muito menos dinheiro, respeito e visibilidade do poder público e da iniciativa privada que as atrações ditas nacionais”, arremata Rodrigo Caçapa. Há quem acredite que grandes palcos devam ser ocupados por grandes nomes, que o público quer mesmo é assistir aos shows gratuitos. O que pouca gente sabe é que, na maior parte das vezes, esse painel é motivado por interesses de gestores públicos, empresários artísticos e políticos, configurando-se como um jogo de cartas marcadas. “As mesmas produtoras escalam as mesmas bandas. Para entrar na programação, tem que aceitar as regras do jogo. Se o artista reclamar, fica de fora (muitos estão nessa situação)”, escreveu Salazar em artigo publicado no site colaborativo Overmundo.

“As mesmas produtoras escalam as mesmas bandas. Para entrar na programação, tem que aceitar as regras do jogo. Se o artista reclamar, fica de fora (muitos estão nessa situação)” – Leonardo Salazar

Esse sentido de submissão a práticas nem sempre lícitas afeta produtores e artistas das mais variadas esferas da música. É o caso de Zeca do Rolete, mestre griô e coquista, que se vê imerso nessa atmosfera para poder realizar suas apresentações e viver da música. Costumeiramente, Zeca está presente em sambadas de coco realizadas nas periferias de Olinda e Paulista. Sua participação é espontânea e, sem receber qualquer cachê em troca, o mestre brinca e oferece gratuitamente o que recebeu geração após geração. O seu grupo, composto por sua própria família, depende principalmente das apresentações patrocinadas pelas prefeituras. “Agora no carnaval, espero receber com mais de três meses de atraso, enquanto uma banda grande recebe na mesma hora! O empresário deles chega e dá R$ 10 mil aos atravessadores e dá mais R$ 10 mil a outra pessoa que tem lá. Eu estou ganhando R$ 8 mil e ainda pago R$ 2 mil a outro lá dentro, pago 20% de impostos e também 10% ao meu produtor. Vê quanto eu vou ganhar!?”, lamenta.

“A espetacularização da cultura popular, atualmente objetivo do capitalismo, tenta obter ganhos, seduzindo turistas e promovendo exibições de cultura que contrastam com o cotidiano destes” – Roseana Borges

Sujeitar-se a esquemas desse tipo é uma faca de dois gumes, sobretudo quando falamos de música popular, cujo conceito distancia-se do “espetáculo”. O livro Maracatu rural, luta de classes ou espetáculo?, de Roseana Borges de Almeida, defende que a indústria cultural espetaculariza a brincadeira. “A espetacularização da cultura popular, atualmente objetivo do capitalismo, tenta obter ganhos, seduzindo turistas e promovendo exibições de cultura que contrastam com o cotidiano destes”, escreveu a autora. Linha de pensamento compartilhada pelo cantor Siba Veloso, que em recente comunicado acerca da polêmica que envolveu a restrição de horário de término das sambadas da Mata Norte, afirmou: “Para o maracatuzeiro, maracatu só é maracatu se amanhece o dia. Senão, vira ‘folclore’, palavra usada na região para denominar todo tipo de apresentação artificial, show pra turista, filmagem pra TV”.

Práticas viciosas já entranhadas na raiz das políticas culturais hostilizam o empreendedorismo do setor. O poder público não deve amamentar nem tampouco abandonar a classe artística. Esta, por sua vez, pode descobrir-se autossuficiente. A autonomia do músico na hora de compor e expor seu trabalho precisa ser diretamente proporcional ao ato de assumir e administrar a própria carreira, pois ambas atividades fortalecem a categoria. De resto, há que se ampliar a logística do mercado, arriscando novas maneiras de fazer render e escoar a produção musical, a exemplo do que acontece com o funk carioca ou o tecnobrega paraense. É possível que o pão nosso de cada dia nos seja dado hoje e sempre, mas não adianta ficar só na reza.

 Publicado originalmente na 2ª edição da revista Outros Críticos.

Arte de capa do site: Daaniel Araújo.

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Karol Pacheco Escrito por:

Jornalista e repórter da revista Outros Críticos. Diretora da Fundação de Cultura de Camaragibe. Roteirista e performer.

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