“Music mix the bourgeoisie and the rebel”. (Madonna)
Saudações multicolores!
Inicio esta contribuição a OUTROS CRÍTICOS como uma homenagem a seu universo inicial: a Música! Parabenizo inclusive a crescente intenção da plataforma em dialogar mais fortemente com outras “linguagens” artísticas! Neste sentido, aproveito para, previamente e a título de “choro de pitanga”, reclamar de que nunca tive aulas de Música em minha Educação Básica! Tal ignorância “vivencial” provavelmente perpassará este texto, em tom de reverente ousadia; ou de ousada reverência!
Meu consolo é o de que a música, mesmo se não “estudada”, é vivida por todos (talvez de forma mais vital do que a relativa à mais “enigmática” imagem visual?). Talvez, mas neste sentido de homenagem ao histórico projeto de diálogo entre as artes, que já rendeu muita melodia e muita cacofonia, trago uma proposta de discussão, para o domínio da Música, de uma noção bastante presente nos estudos históricos nas Artes Visuais: a de Iconoclastia (ou, literalmente, a “destruição de ícones”). Por quê? Porque buscarei contemplar o tema em si, que sempre me apaixonou, ao mesmo tempo em que aproveito para colocá-lo frente a um contexto artístico e cultural no Brasil de hoje que muitos descreveriam, justamente, como “iconoclasta”.
Uma primeira precaução é a necessária distinção entre, por um lado, o uso dos termos “ícone” e “iconoclastia” em seus sentidos gerais de “imagem” e “ódio às imagens”, respectivamente e; por outro lado, a não menos necessária menção ao estatuto teórico e histórico destas noções. Assim, após averiguar o que é um ícone, poderemos discutir a natureza de um ícone musical, para que enfim se possa falar de uma iconoclastia em música. Em poucos outros casos, o trânsito entre os sentidos especializados e coloquiais de termos como estes gerou tamanho ruído.
Para os dicionários, de forma geral, ícone (do grego eikón, ‘imagem’, pelo latim icone) evoca primeiramente as representações pictóricas bidimensionais, na Igreja Ortodoxa, da figura do Cristo, da Virgem ou de um santo (ver Fig.1). Este primeiro sentido é a fonte da ideia de iconoclastia como, primeiramente, uma “ideologia”, datada mas reincidente, de oposição à representação de ideias que, por alguma razão, não deveriam ser representadas. O assunto é por demais rico e complexo, pelo que recorro à seguinte “Wiki-síntese”:
O ícone é a representação da mensagem cristã descrita por palavras nos Evangelhos. Se trata de uma criação bizantina do século V, quando da oferta de uma representação [pictórica] da Virgem, atribuída pela tradição a São Lucas. Quando da queda de Constantinopla em 1453, foi a população dos Bálcãs que contribuiu para difundir e incrementar a produção desta representação sacra, sendo na Rússia o local onde assume um significado particular e de grande importância. (…) No século VIII, as autoridades do Império Bizantino mudaram totalmente o uso dos ícones, e uma proibição pelo imperador Leão III e seu filho Constantino V durou muitos anos, o chamado período iconoclasta, até ser revogada por um Concílio e ser restaurado pela Imperatriz Teodora. (fonte: Wikipedia/ícone)
Pode-se argumentar que a importância deste episódio contribuiu para a sedimentação, na linguagem comum, do sentido básico de ícone enquanto imagem (visual). Séculos mais tarde, contudo, o desenvolvimento dos estudos sobre a representação na linguagem que iriam se desenvolver, por exemplo, com a Semiótica, tornariam relativamente familiar um outro sentido de ícone: o de “modalidade de signo pautada por semelhança com seu referente”. Importante é frisar que mesmo aqui, os dicionários, de novo, exemplificam este sentido através de expressões como “fotografia, diagrama, mapa, etc. (AURÉLIO, 2001: 912)”, sem recorrer a nenhum exemplo musical. Como reação a tal hegemonia do visual, os estudos teóricos em Música, ao que consta, desenvolveram sua variante semiótica, de matriz peirceana[i], a partir de Coker (1972), sedimentada no Brasil graças a autores como Santaella (1983, 2004 ) e Martinez (1991).
A ideia de ícone musical, assim, nasceu de discussões mais seriamente ligadas ao campo de estudos teóricos e especializados da Semiótica, fomentando o consenso de que a Música, em si, seria essencialmente icônica, dada a autorreferência de seu substrato sonoro. Ironicamente, este sentido mais estrito não tem sido páreo para outros, mais contemporâneos, associados à linguagem corrente e tributários do sentido primeiro de ícone enquanto imagem (venerável). Por exemplo, é comum hoje a associação entre as ideias de “ícone musical” e a de “celebridade”, transferindo a “aura” da obra, por exemplo, a seu “performer”. Mais do que negar a citada iconicidade básica da música, este estado de coisas na verdade apenas o flexiona em favor de outras dimensões semióticas mais pragmáticas, ligadas à recepção e ao “uso social”.
Oliveira (2007) bem resume esta “equação semiótica” da Música:
A música (no caso a música sem texto) é essencialmente icônica, porque se refere apenas aos dados acústicos, ou seja, à sua própria materialidade, não havendo nada externo à qual se vincule, somente se reportando às suas próprias qualidades. (Oliveira, 2007: 50),
mas
Como ícone ela diz tudo, qualquer coisa possível como som musical, pois é livre de um vínculo com o real, não apontando para nada determinado, senão para si mesma. Seu possível indicar para algo externo a ela não descaracteriza seu caráter de ícone, mas a recria como índice e se mostra como parte de um todo dizendo que vive em determinado momento histórico, que pertence a um estilo específico de composição. Quando a música se transmuta em algo exterior a ela, reveste-se de outras qualidades, de outras eras, e representa, como atriz, um canto de pássaros, uma marcha militar, uma cavalgada, é símbolo musical. (Oliveira, 2007:102)
A História da Arte que estudei na Universidade, em clássicos como Argan, Janson e Gombrich, é uma historia de imagens visuais. A Ilíada e o Réquiem de Mozart, neste sentido, não seriam objeto da História da Arte. Provavelmente, os valores que me eram passados em termos de “ícone” fossem passados aos estudantes de Música e Letras em termos de “cânone”. De qualquer forma, quando Erwin Panofsky falava de “ícone bizantino”, certamente não era no mesmo sentido que o trazido depois pela Semiótica Peirceana, tornada imensamente influente no estudo da imagem e também no da música, como agora visto. Num movimento intelectual interessantíssimo, a noção de ícone musical se valeu da noção de semelhança a si mesmo (às suas propriedades acústicas primeiras), criando um espaço de autonomia em relação ao ícone visual ao mesmo tempo em que instaurava o signo musical como “essencialmente icônico”. Contudo, como salientado acima por Oliveira, a contemporaneidade é avessa a essências, enfatizando justamente a dimensão da Semiótica Peirceana que, para o bem ou para o mal, preconiza que todo signo é, em proporções variáveis, ícone, índice e símbolo.
É preciso reconhecer que este desenvolvimento teórico da Semiótica foi e é importantíssimo para a legitimação disciplinar da Música enquanto objeto de estudo avançado. Contudo, neste momento de mais ou menos supostas e mais ou menos efetivas globalização, digitalização e miscigenação, temos que uma contemporânea e generalizada acepção de ícone musical transcende o SOM que apresenta, estando na verdade associada a todo um sensorium atrelado à veiculação em massa dos conteúdos musicais, com sua imensa carga de discursos e representações mais ou menos subjacentes – musicalmente e/ou não.
Contemporânea iconoclastia musical
Assim, vejamos algumas possíveis variantes de uma “contemporânea iconoclastia musical”: primeiramente, para alguns, especializados, a natureza musical do pagode, por exemplo, não passa de uma “deturpação” (“iconoclasta”) em relação ao samba, o mesmo se dando na relação entre o “forró universitário” e o “forró pé de serra” e inúmeros outros casos. Semioticamente falando, nenhuma dessas expressões é menos “icônica” do que a outra. Elas diferem, sim, enquanto índice e símbolo; naquilo que indicam ou simbolizam, cultural e socialmente.
Falando menos semioticamente, podemos passar também ao caso da recente crise na estrutura de preservação de direitos autorais e de reprodução on-line de músicas. Para alguns, especializados ou não, a possibilidade de veicular um conteúdo musical sem o consentimento ou conhecimento de seu autor ou da gravadora que o representa constitui uma flagrante violação legal de direitos do trabalho dos envolvidos. A violência aqui, mais que estética, seria ética, como na recente moda, na cidade do Recife, de roubos de equipamentos musicais de vários profissionais.
Finalmente, uma terceira possibilidade, que me perturbou particularmente:
Quem não teve formação musical, como eu, não reconhece as profundezas e sutilezas da diferenciação musical entre Zeca Pagodinho e a Velha Guarda da Portela, por exemplo. Não reconhece a que se assemelham suas propriedades icônicas de “pura qualidade”. Reconhecemos claramente, no entanto, que tanto Zeca Pagodinho quanto a Velha Guarda da Portela (em certo sentido mais do que sua própria música) são “ícones musicais” para seus respectivos fãs, assim como Bach, Maria Alcinda, Britney Spears, Chopin ou DJ Remixon, “a sensação do Engenho do Meio”. A contemporânea iconoclastia musical recai fatalmente sobre o performer e sua valoração (ou para usar uma palavra mais “icônica”, sua legitimação) social. Num episódio recente da crônica política nacional, o músico Chico Buarque de Holanda foi hostilizado publicamente por sua “orientação política” e, supostamente, chamado de “burro” em plena rua. A violência aqui, mais que estética ou ética, seria política.
Enfim, a música, principalmente em termos de “mainstream”, é hoje mais vista que ouvida (ou pelo menos tão quanto). VEMOS um “Picasso” e VEMOS quem foi Picasso, numa entrevista da BBC. OUVIMOS Caetano Veloso mas VEMOS e LEMOS muito mais se ele canta ou não em Israel e se reconhece ou não o atual Governo Interino do Brasil. Para muitos, Lobão “era legal”, mas está “morto” após certos posicionamentos publicados on-line. Nesta e em possíveis outras modalidades de violência simbólica reside nossa contemporânea iconoclastia, que ao mesmo tempo se aproxima e se afasta dos rigores da Semiótica Peirceana. No momento em que escrevo este texto, Anitta canta na Cerimônia Oficial de Abertura dos Jogos Olímpicos de São Sebastião do Rio de Janeiro; as primeiras a tomar lugar na América do Sul.
Isto é, certamente, icônico, indicativo e simbólico “de muita coisa”.
[i] De Charles Sanders Peirce, filósofo americano cuja Semiótica se funda, resumidissimamente, na tríade ícone, índice e símbolo.


Referências citadas:
BUARQUE DE HOLANDA. Aurélio. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Nova Fronteira, 2001;
OLIVEIRA, Luciana David de. Signos e Metáforas na Comunicação da Música. Dissertação de Mestrado. PUC/SP. 2007.
Referências não citadas:
ARGAN. Giulio Carlo. Arte Moderna. Companhia das Letras, 2010;
COKER, Wilson. Music and Meaning: a Theoretical Introduction to Musical Aesthetics. NY: The Free Press, 1972;
GOMBRICH, Ernst. A História da Arte.Ltc, 2013;
JANSON, Historia del Arte. Labor, 1965;
MARTINEZ, José Luiz. Música e Semiótica. Um estudo sobre a questão da representação na linguagem musical. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 1991;
PANOFSKY. Erwin. Estudios sobre Iconologia. Alianza, 2005.(1a. ed. 1939);
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica, trad. José Teixeira Coelho Neto. 3a. ed. São Paulo: Perspectiva. Tradução de: The Collected Papers of Charles Sanders Peirce;
SANTAELLA, Lúcia. A Teoria Geral dos Signos. 1a. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004;
________________. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983 (Coleção Primeiros Passos).
Bibliografia: TATIT, Luiz. Semiótica da Canção. Escuta. 2007.
Internet: https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dcone
Fontes das Figuras:
http://lista.mercadolivre.com.br/antiguidades/icones-russos
http://www.jobim.org/chico/handle/2010.2/1410
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