O valor invisível da crítica musical

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Artes: Daaniel Araújo

por Carlos Gomes.

“Essas bandas estão pouco se lixando para a crítica musical. Elas não precisam dela.”

Diante da notória e propagada crise da crítica cultural, ou mesmo do jornalismo cultural como um todo, observar como a crítica musical tem se movimentado é um exercício interessante sobre o lugar da reflexão na música contemporânea. São leituras que não passam necessariamente pelo texto crítico a que habitualmente estávamos acostumados, aquele reproduzido pelo jornalista especializado em música de algum jornal ou revista impressa, ou pelas postagens de sites e blogs em forma de resenha. Essas são partes da crítica, pelo menos a mais visível ou canonizada pelas relações de troca entre leitores, fãs, músicos, produtores, jornalistas etc, mas não o todo da crítica musical. Sites de compartilhamento de discos, debates, conversas informais, estantes de CDs e vinis, bandas selecionadas para festivais, seleção de melhores do ano, comentários em sites, mensagens de texto, micro-mensagens, programas de rádio, programações culturais de gestores públicos, releases, todas essas formas exercem algum tipo de recorte crítico que, em diferentes níveis, querem marcar algum posicionamento. Questões como gosto, julgamento e valor são intrínsecas a esse recorte. A questão está justamente em refletirmos sobre de onde se fala, para quem se fala, e com que intenção se fala, no que diz respeito a cada uma dessas maneiras de se relacionar com a música.

“A autoridade que se pressupunha ter o crítico, ou mesmo os jornais e publicações de grandes corporações midiáticas, não faz mais sentido nas relações de troca da música contemporânea […]”

A autoridade que se pressupunha ter o crítico, ou mesmo os jornais e publicações de grandes corporações midiáticas, não faz mais sentido nas relações de troca da música contemporânea, sobretudo pelo embaralhamento das identidades ocasionado pelo lugar privilegiado que a internet adquiriu para o consumo de música. A voz da crítica se confunde com a do músico, fã, curador, produtor, assessor de imprensa. A questão que lanço é se a crítica desapareceu ou apenas mudou de lugar, e, se na mudança, perdeu o forte laço que tinha com o questionamento e a reflexão.

Para o pesquisador e professor Bruno Nogueira, em entrevista sobre a relação entre a crítica musical e as transformações sofridas pela internet: “Antigamente existia muito menos crítica, muito menos vozes ativas e qualquer reflexão sendo feita. Principalmente, porque não precisamos de uma iniciativa institucional para isso. As pessoas estão fazendo isso no Facebook, no Twitter, no Instagram, em seus blogs, podcasts, videocasts etc”. As múltiplas vozes e lugares de exposição da reflexão de que Nogueira fala são importantes como quebra de paradigma da crítica tradicional. Mas se a crítica é o lugar onde as tensões devam se estabelecer para que a música seja mais que a reprodução irreversível de uma estrutura, técnica ou tradição, o aparente novo status da crítica parece apontar para um arrefecimento das ideias. Não há mais choque ou dissenso. Na verdade, até há, mas não como troca de argumentos, ou mesmo de impressões, textos, intertextos, mas, muitas vezes, como agressão pessoal àquele que incomoda ou atrapalha a ordem natural dos acontecimentos.

“A crítica é o lugar do debate, do contraditório, da reflexão. Mas a questão é: até onde estamos preparados para o debate, a reflexão e o contraditório?” – Anco Márcio Tenório

Quando a invisibilidade da reflexão cultural se torna preponderante nos meios tradicionalmente visíveis, outras vozes e seus diferentes interesses se somam aos interesses fundadores das grandes empresas midiáticas. Leia-se troca de favores, publicidade, agendamento. Domesticar a crítica é uma forma de torná-la invisível e desvalorizada culturalmente. “A crítica é o lugar do debate, do contraditório, da reflexão. Mas a questão é: até onde estamos preparados para o debate, a reflexão e o contraditório? Ou preferimos o tapinha nas costas, a falsa ilusão de que o que fazemos é de fato bom ou mesmo acima da média? Algo me diz que preferimos a segunda alternativa”, questiona o escritor e professor da UFPE Anco Márcio Tenório.

Enquanto conversávamos sobre música e seus vários desdobramentos, Hélder Aragão (DJ Dolores) lembrou que há setores do mercado musical que não necessitam, nem sentem falta da crítica musical; o papel do crítico é desimportante para eles, como exemplo, citou as cenas musicais do brega e funk, aplicando esse pensamento aos cenários de Pernambuco e Rio de Janeiro, respectivamente. O discurso de Dolores pressupõe a crítica tradicionalmente exposta por resenhas em jornais ou mesmo em blogs especializados em música. Realmente, se alguma cena musical necessitasse desse tipo de crítica – praticamente extinta – para sobreviver, estaria tão em risco quanto a própria crítica musical. Contudo, o discurso de Dolores – mesmo que claramente a sua intenção não tenha sido essa – não pode ser generalizado como desvalorização da escrita reflexiva sobre música a par de sua inutilidade para diferentes nichos de mercado; já que o crítico, segundo Daniel Piza, tem a “[…] capacidade de ir além do objeto analisado, de usá-lo para a leitura de algum aspecto da realidade, de ser ele mesmo, o crítico, um autor, um intérprete do mundo.”

Diante disso, o valor da crítica musical está para além de seu pretenso poder comercial em alavancar carreiras, servir de estímulo a curto prazo para bandas ou nichos músicas quaisquer que sejam. Seu valor se faz pelo atrito com ela mesma, uma crítica da crítica disposta a rever seus valores, locais de fala e a produzir reflexão de forma autônoma, sem com isso, negar-se a estabelecer diálogos com os diversos setores da cadeia musical.

 Publicado originalmente na 2ª edição da revista Outros Críticos.

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Carlos Gomes Escrito por:

Escritor, pesquisador e crítico. É editor dos projetos do Outros Críticos, mestre em Comunicação pela UFPE e autor do livro de contos "corto por um atalho em terras estrangeiras" (2012), de poesia "êxodo," (CEPE, 2016) e "canto primeiro (ou desterrados)" (2016), e do livro "Canções iluminadas de sol" (2018), um estudo comparado das canções do tropicalismo e manguebeat.

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