Entendemos por cadeia produtiva o conjunto de agentes que fazem parte de um determinado filão relacionados a um produto cultural de consumo (NOGUEIRA, 2008). Sua composição clássica é dividida entre esferas de produção, circulação e consumo (JAMBEIRO, 1975) e, de costume, representada por exemplos de maior força, como, por exemplo, as gravadoras multinacionais (Warner, Sony, EMI, Universal) para o campo da produção. Esse é, portanto, um modelo que enfrenta constante crise na medida em que a indústria passa por crises de formato (como se produz música?) e de consumo (como se escuta música?) e esses representantes perdem o antigo potencial quase que totalitário neste processo da música.
Essa tensão, no entanto, não é nova. O mercado de música encontra divisões constantes entre o “mainstream” (o fluxo principal da produção, de caráter notadamente massivo) e o “underground” (que, apesar de ainda direcionado a uma grande audiência, não está interessado nos canais principais de circulação). A palavra-chave desse embate em todas essas fases parece ser a “autonomia” de seus agentes em produzir, fazer circular ou consumir o que querem, no lugar do que é explicitamente imposto por uma indústria cultural. Gêneros como o rock e suas vertentes costumam associar uma autenticidade em sua produção a partir da ideia de autonomia em relação ao mercado fonográfico.
O conceito de autonomia encontra sua fusão entre estética e mercado na década de 1970, principalmente no movimento punk dos Estados Unidos. Nesse período surgiram as primeiras formações de um mercado específico, “com a criação de veículos de comunicação especializados, pontos de vendas e espaços culturais que não atuavam exatamente dentro da lógica do mainstream” (HERSCHMANN, 2007, p.23). Mesmo que isso significasse um diálogo próximo às grandes gravadoras, com empresas como a Warner Music distribuindo e comercializando os discos do Dead Kennedys que eram comentados nos fanzines locais.
No Brasil, essa autonomia divide o entendimento geral de cadeia produtiva em uma camada independente e outra corporativa, mas que não são antagônicas. Agentes dessas diferentes esferas dialogam em veículos de comunicação e, muitas vezes, têm objetivos comerciais em comum (NOGUEIRA, 2009). Apesar desses encontros, perceber camadas diferentes dá uma noção de conceito guarda-chuva para a ideia de cadeia produtiva, abarcando, na realidade, diferentes formações de mercado. Em termos práticos, significa dizer que quem trabalha com o gênero samba não necessariamente vai seguir as mesmas lógicas ou interagir com os mesmos agentes de quem trabalha com o gênero rock.
Uma teoria que tenta dar conta dessa dispersão do mercado de música é a da “cauda longa”, a partir da afirmativa que “na atual configuração do mercado de consumo há muito mais nichos do que hits” (ANDERSON, 2006, p.51). Gêneros que, até então, tinham pouca visibilidade por não representarem um produto de retorno comercial, como a música pop instrumental, passam a encontrar relevância ao somar, na internet, pequenas parcelas de público interessadas neste tipo específico de produto. Por isso, em uma realidade que dá espaço de consumo para um número incalculável de artistas, em oposição à limitação física-orçamentária das gravadoras tradicionais, pensar em mercados de nicho parece fazer mais sentido do que uma lógica única para se lidar com a cultura de consumo.
Sendo assim, em lógicas de produção independente, com gêneros que estão distantes do consumo massivo clássico, os blogs passam a desempenhar uma função tão relevante no processo da música quanto uma revista especializada de grande circulação. A mídia tradicionalmente ocupa espaços destinados à divulgação e promoção na visão geral da cadeia produtiva da música, na qual uma gravadora entende que, para seu artista ter visibilidade e ser consumido, ele precisa ter uma presença constante em jornais, programas de TV e rádio, seja através de avaliações positivas e negativas, no escopo de uma programação musical ou com presenças em programas de auditório.
Apesar de serem espaços distintos, em geral as empresas de mídia aglutinam uma série de escritórios que reúnem todas essas atividades. Sendo assim, um artista de grande gravadora pode ter uma resenha crítica de seu disco publicada no jornal O Globo, uma cobertura de seu show de lançamento no portal G1, uma presença no quadro Domingão do Faustão e estar na programação diária da Rádio Globo FM. Ou seja, uma única empresa de mídia (a Globo Comunicação e Participações S/A) tem um poder de agendamento em relação a um produto que vai além de sua avaliação.
Mesmo sem o poder de alcance de uma corporação como a Globo, os blogs têm o potencial de usar seu espaço para circulação e promoção de artistas menores através das mesmas linguagens, como em podcasts, clipes e produções independentes de vídeo. Também através do encarte do álbum completo para download, como fazem o objeto central deste artigo, que são os blogs de MP3. Mesmo sendo uma mídia de suposto menor alcance, alguns desses endereços conseguem superar, em acesso, a veiculação mensal de grandes revistas, como a Rolling Stone Brasil, representando, assim, um ambiente favorável para a divulgação musical além do ciclo de conhecidos do editor do blog em questão.
Também é de se considerar a natureza associativista dessas mídias. Apesar de nem todas praticarem o uso de licenças colaborativas, como a Creative Commons, existe uma certa liberdade permitida entre autores na Internet. Frequentemente, o crédito dado à fonte costuma funcionar como um “acordo de cavalheiros” entre diferentes sites e blogs interessados em um conteúdo em comum. Portanto, se existem mímicas distintas ao trabalho jornalístico na web, seja em sites de crítica e resenhas assinadas pelo público na condição de ouvinte, seja em blogs de MP3, existe um encontro comum dessas atividades.
Blogs como “Um que tenha”, “Eu ovo”, “Criatura de Sebo, “Hominis Canidae”, “300 discos” e “Abracadabra” sempre oferecem o download de discos associados à opinião. Mesmo que este artigo argumente que apenas a seleção dos discos é uma expressão de opinião forte o suficiente para significar uma intenção de orientação ao consumo, os editores desses blogs – que, por sua vez, não são jornalistas, nem têm esse trabalho associado a nenhuma empresa de mídia – sempre parecem fazer questão de associar o disco oferecido a uma opinião sobre ele, mesmo que essa venha de outros blogs, assinados por outros autores, destinados à resenha, crítica e à cobertura de shows e festivais.
Essa opinião atrelada ao download ainda reforça uma afirmativa de Frith em relação ao jornalismo musical e ao consumo que é destacada neste artigo, referente à forma como a cultura importa de maneiras diferentes para o público. Um disco é avaliado positivamente, ou de consumo relevante, com argumentos que são bem mais simples, do tipo “banda mineira bem legal e semelhante a um navio”, ou “com certeza você vai sentir saudades de seu Super Nintendo ao ouvir esse disco”, em oposição a valores técnicos, como uso de acordes e notas, vocais, ou de mercado.
Por Bruno Nogueira.
Excerto do artigo: Por uma função jornalística nos blogs de MP3 – Download e crítica ressignificados na cadeia produtiva da música. Disponível no e-book: Dez anos a mil: Mídia e Música Popular Massiva em Tempos de Internet (2011). Organizado por Jeder Janotti Jr, Tatiana Lima e Victor de Almeida.
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