
por Karol Pacheco.
Nas grandes cidades do mundo, o espaço privado segue em plena expansão enquanto o espaço público se reduz. Esse último é, cada vez mais, alvo das estratégias de reabilitação e gentrificação, ambas símbolos de uma política de “limpeza social”. Antes pontos de encontro e de festa, os espaços públicos tornam-se meramente locais de passagem. Apesar disso, a rua ainda se mantém como um grande palco onde cada manifestação artística é, por si só, um gesto político.
Desde a Ilha do Massangano, no Sertão pernambucano, com o Samba de Véio; passando pela Zona da Mata, em Tracunhaém, onde se brincam as Sambadas de Baé; até chegar às periferias do Grande Recife, diferentes sambadas de coco proliferam-se pelas ruas de Pernambuco, compondo um cenário de resistência cultural único.
Vinculada a um terreiro de matriz africana, a Sambada do Coco de Umbigada ocorre no primeiro sábado de cada mês, no Beco da Macaíba, bairro do Guadalupe, Olinda. A Ialorixá do terreiro, Mãe Beth de Oxum, conta que fazer uma brincadeira na rua tem suas especificidades: “Realizamos a Sambada, ininterruptamente, há 17 anos. O tempo passa, mas a intolerância com os brinquedos de rua ainda é grande. Não existe lei para ouvir um tambor ancestral tocar. Intolerância se reverte com muita pedagogia, paciência e espiritualidade.” As sambadas, sejam elas de coco, maracatu ou cavalo marinho, têm, de fato, o espírito democrático de um espaço público. “Não é na Arena Pernambuco ou no Chevrolet Hall! As sambadas se materializam no quintal, depois passam para porta de casa e então tomam a rua, com todo o seu axé”, defende Mãe Beth.
“A intenção é levar uma cultura, antes marginalizada, para dentro do cotidiano da cidade.”
A rua, sendo imprevisível, incita o improviso. Na Batalha da Escadaria, os MCs esgrimam suas rimas em duelos cravados no cruzamento da esquina da Avenida Conde da Boa Vista com a Rua do Hospício, uma das mais importantes artérias do Centro do Recife. Dentre o caos da cidade, o embate acontece ali há quatro anos, na primeira sexta-feira de cada mês. O fundador e organizador do evento, Luiz Carlos Ferrer, conhecido como Du, explica o principal motivo da escolha: “A intenção é levar uma cultura, antes marginalizada, para dentro do cotidiano da cidade. Ali é um lugar que dá para todo mundo chegar de ônibus. Tem gente de Paudalho, Paulista, Nazaré (da Mata)… é o nosso ponto de encontro, um celeiro, faça sol ou faça lua. A coisa é grátis, nosso holofote é a rua”, dispara. Nessa paisagem sonora, os ruídos das partidas e chegadas dos ônibus intercalam-se com os versos lançados.
“Fiquei na rua trabalhando até a hora de voltar à rua para fazer a festa”, introduz a nossa conversa Liana Cirne Lins. Ela é professora da Faculdade de Direito do Recife/UFPE e ativista do grupo Direitos Urbanos, que faz do direito à cidade a sua causa. De acordo com a advogada, o Recife tornou-se uma mercadoria de elite. “Pobres não podem fruir a cidade, pois até mesmo as festas populares têm sofrido com a censura. Os maracatus sofrem perseguição policial; a Festa da Lavadeira é desalojada por duas vezes seguidas em apenas três anos; a Praça do Diário, quartel general do frevo, é privatizada pela Rede Globo sob os auspícios (ou hospício) do poder público para que os criados a Danoninho da cidade possam brincar seu Carnaval entre muros, separados da mundiça”, conclui, comentando ainda o episódio da casa-camarote Carvalheira na Ladeira, no Carnaval de Olinda deste ano, onde o evento prejudicou o fluxo de brincantes em ladeira no Bairro do Carmo, Sítio Histórico. “Esses são exemplos não só de ilegalidade na violação do espaço público, mas de verdadeira imoralidade”, contesta.
“Esse encontro musical (Som na Rural) tem servido também para fomentar discussões em torno da ocupação dos espaços públicos”
Uma das iniciativas independentes de ocupação de espaço público mais midiáticas, com a qual também está envolvido o grupo Direitos Urbanos, é o Som na Rural (SNR). A ocupação já “sofreu a repressão da Secretaria de (i)Mobilidade e Controle (seletivo) Urbano”, como ironiza Liana. Esse encontro musical tem servido também para fomentar discussões em torno da ocupação dos espaços públicos, chegando inclusive a levar duas mil pessoas à desértica Rua da Aurora, área central da cidade. Além disso, o veículo “autoemotivo” do SNR aportou nas paisagens sonoras de comunidades como Ilha de Deus e Coque, no Recife, e também no bairro do Carmo, em Olinda.
A itinerância do Som na Rural propicia, a cada ocupação, sons e sonoridades diferentes. O técnico de áudio responsável, Adriano Duprat Lemos, explica: “música e ruído, apesar de se propagarem da mesma forma no ar, possuem ordenações harmônicas diferentes. Portanto, mesmo estando presentes, os dois elementos em um mesmo ambiente, é possível captar ambos de forma clara e praticamente independente.”
Liana esclarece que a música é capaz de dar vida aos lugares onde ela é executada. “Atrai pessoas. Alegra, faz refletir, sensibiliza. Durante a ditadura, a música era uma forma de contestação e denúncia que conseguia burlar a censura. Cinquenta anos depois do golpe, a música é chamada de volta a exercer esse seu papel político na luta pela democratização do espaço público.” É o ar que corre na rua, com seus sopros sonoros envolventes, que articula sentidos individuais e coletivos de construção de identidades.
Publicada originalmente na 3ª edição da revista Outros Críticos.
Arte de capa: Jeims Duarte
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