Imagem de capa: Na rede de crianças autistas formada pelo poeta e etólogo francês Fernand Deligny, a comunicação verbal era substituída por ferramentas visuais como desenho de mapas, fotos e filmes. Uma forma de registrar e interpretar os gestos e divagações dessas crianças. Grafismos como este, indicavam por linhas a movimentação dos corpos das crianças autistas e dos adultos presentes, além de localizar objetos no espaço de convivência das redes de acolhimento. Eram traçadas em transparências sobrepostas a mapas dos locais.
DEXISTIR*
Um artista sem obras se faz – pois não se trata de uma coisa espontânea – quando se desfaz de suportes, ou de uma especificidade técnica, e quando passa a ser propositor na construção da própria vida como universo poético. Embora não seja um especialista, o artista sem obras tem a capacidade de emergir acima da alienação cotidiana porque radicaliza sua experiência diária, transformando momentos banais e tragicamente magníficos do dia-a-dia.
Ora, um modo de existência artística, carregado de “atividades ordinárias”, se firma ao colocar em prática uma poética que ultrapassa uma série de transformações formais e se estabelece no plano político. Esse modo de existência é fruto de mudanças subjetivas e ruptura com uma série de significações dominantes. Revela o esgotamento nos campos legitimados da arte e da política partidária, que criam ilusões de inteireza (de nós, de justiça, de liberdade, de futuro) sob a lógica das reivindicações palpáveis, e não dos desejos, sempre instáveis e conflitantes.
Dexistir, para um artista sem obras, é promover uma estética que implica numa ética, ou seja, na construção da vida como realização artística que prescinde da presença de obras de arte.
Nessa acepção, o objeto de arte em seu modo de apresentação costumeiro, voltado para uma audiência, seja no museu ou mesmo fora do abrigo institucional, não é mais indispensável. Pensar o artista sem obras é deslocar, pois, a compreensão da arte em seus códigos mais bem delimitados, como aqueles que privilegiam realidades manifestas ou a construção de imagens.

Desistir de produzir obras, e refutar um modo de produção cultural, acontece como negação da formação de uma nova realidade em favor da ação de existir nela. Dexistir não é apenas a sustentação do desinteresse de agir de um artista sem obras, é antes fazer pensar planos de existência descartados cotidianamente – “futuros soterrados no passado”[1]. É clamar por uma inversão na forma de operar do artista ao Ser propositor de experiências e instaurar um o modo de existência estética por vir.
Assim, busca-se uma problematização do sujeito numa estética que ultrapasse a parafernália construída em torno da lógica do espetáculo e dos códigos da genealogia do sistema da arte. E nesse caso, ao tomar partido pelo sujeito que desiste, esforçamo-nos por indicar a necessidade de avançar em movimento oposto a um pragmatismo da percepção, para desvelar a pluralidade dos modos de existência do artista; não para ver o que ele vê, mas para fazê-lo existir mais. Dexistir como a arte de existir.
* Texto dividido em três pequenas partes/verbetes ficcionalmente intitulado de “manual”. Pretensioso como qualquer guia, este ambiciona fazer parte de uma estética das listas elencando apenas três situações sobre a arte como reinvenção de mundo e de modos de viver – a vida de artista, nesse caso, sem obras. O desejo idílico, obsessivo ou fracassado, por uma práxis criativa que ao se deparar com uma acumulação confusa de fenômenos mal definidos, propõe a ordenação de uma lista.
[1] Cf. Peter Pál Pelbart, “Por uma arte de instaurar modos de existência que ‘não existem’”, in: Catálogo da 31ª Bienal de São Paulo. Fundação Bienal: São Paulo, 2014, p. 264.
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