
por Siba.
Recife, 3 de Fevereiro de 2014.
Antes de ser um cortejo de carnaval que representa uma nação em movimentos de guerra, Maracatu é uma festa na rua, que acontece aos sábados, à noite, entre setembro e o carnaval, e que é conhecida por amanhecer o dia. Nela, se dança um ritmo que só existe ali. Não tem um passo único, estereotipado, cada um dança de um jeito, no estilo da coisa, mas ninguém dança igual. A Manobra, coreografia que abre e fecha a festa, é um movimento intrincado que envolve dançarinos, músicos e poetas, numa constelação em movimento que parece a imagem do caos que gerou o mundo, mas que se move com a graça e a beleza de um futuro mundo melhor possível, pra quem souber ver. Se canta poesia rimada e, em grande parte, improvisada. Um jogo de inteligência cheio de regras de rima, métrica e uso da linguagem. A musica é rápida, frenética, agressiva, nem um pouco temperada para os padrões musicais que atingem lonjuras através do rádio e da TV.
Tudo na expressão do Maracatu de Baque Solto afirma e reafirma a singularidade das pessoas que nele se veem representadas. Essas pessoas são, em grande parte, as mais pobres de uma região cujas limitações estão diretamente vinculadas a seu passado escravocrata. A Zona da Mata é a cana de açúcar e suas mazelas, e o Maracatu é invenção, tesouro volátil, “patrimônio imaterial” do trabalhador da cana.
O ensaio de maracatu vai até o amanhecer, por costume secular. Para o maracatuzeiro, maracatu só é maracatu se amanhece o dia. Senão, vira “folclore”, palavra usada na região para denominar todo tipo de apresentação artificial, show pra turista, filmagem pra TV etc.
A importância de amanhecer o dia fica mais fácil de se entender, se for pensada talvez como uma coisa mística, religiosa. Parece simples, mas não é. Precisa-se de uma noite inteira, mas não se trata de quantidade de tempo, e sim da possibilidade de suspensão do tempo. Fazer o tempo parar. As pessoas que realizam o trabalho braçal mais pesado só sabem se divertir também levando seu corpo ao limite na dança, no canto, no malabarismo mental da rima.
O Maracatu é o meu grande amor. Me construiu como artista, mas muito mais que isso, me fez como pessoa no mundo. Eu não nasci na Mata Norte, mas sou como um filho adotivo, são já mais de 20 anos de presença minha no lugar, e do lugar em mim. De um universitário visitante apaixonado construí com os anos a capacidade de cantar ao lado dos artistas que mais admiro no mundo: Barachinha, Dedinha, João Paulo, Zé Galdino. Gigantes ali, mas desconhecidos mesmo no Recife do Manguebit.
Precisaria de um livro inteiro para compartilhar o que aprendi nesse tempo, mas a lição mais pertinente ao momento tem a ver com generosidade. Nunca, em meu longo e lento processo de aprendizado, me foi negado o acesso ao conhecimento. Ao contrário, a cada pequeno avanço, novas portas se abriram para mim, e assim é até hoje. Isso me faz sempre pensar que país teríamos se o saber formal fosse compartilhado de maneira tão aberta quanto o oral. Tem gente que enxerga uma romântica rebeldia no maracatu. Mas o maracatuzeiro, na verdade, está sempre fazendo acordo de paz. Maracatuzeiro é quem espera o culto evangélico terminar pra começar a festa. É quem cancela ensaio quando morre alguém do bairro em data próxima.
Maracatu também tem que estabelecer acordo com a polícia. Pra fazer seu ensaiozinho de maracatu, você prepara um ofício e vai à delegacia e ao quartel de sua cidade, informando sobre a realização da festa e solicitando a presença da polícia no local. Esta aparece sempre, em algum momento da noite, observa de longe, eventualmente fazendo alguma batida nos bares ao redor, mas nunca, nunca, entrando dentro do maracatu para interferir.
Nesses anos todos, eu nunca presenciei situação de tensão entre o maracatu e a polícia. Sempre entendi isso como um caso bem resolvido, de acordo entre o poder e o costume local, mas recentemente essa realidade tem mudado. Os maracatus têm sido sistematicamente impedidos de realizar seus ensaios até o amanhecer. No dia 11 de janeiro, passei uma boa parte da noite de ensaio, do grupo que faço parte, o Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata, argumentando com os policiais que ali estavam, sobre a posse ou não do direito de seguir com a festa até de manhã, já que tínhamos o documento com a permissão e eles tinham a ordem superior de nos mandar parar. Paramos o maracatu com o sol no rosto desta vez, mas com a maioria dos grupos da região a história tem sido diferente. Estrela Dourada de Buenos Aires, Leão Misterioso, Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata, e quase todos, tiveram seus ensaios interrompidos às duas da manhã. Curiosamente, noites de maracatu promovidas pelas prefeituras ou por projetos culturais com patrocínio estadual ou federal tem acontecido sem limite de tempo. Conversando com os mais velhos, cuja memória “alcança” os anos 60, não consegui nenhuma lembrança de proibição similar no passado.
De onde parte, movida por quais motivos e que objetivos têm essa imposição? Por enquanto, só posso dialogar com os argumentos do policial que, gentilmente me disse, como se fosse um detalhe banal, que essa “nova ordem” ia valer até pro carnaval: Medidas de contenção da violência, Lei do Silêncio…
Alguém aí consegue imaginar o carnaval do Recife parando às duas da madrugada também? Não acho que leis de respeito ao silêncio pertinentes às grandes cidades devam ser aplicadas de maneira uniforme. O “barulho” do maracatu é música celestial para uma enorme quantidade de pessoas onde ele existe, e cada maracatu só faz a sua festa uma ou duas vezes ao ano. São muitos os amantes do maracatu, e eles também votam nas autoridades que utilizam seus símbolos culturais para promover a “rica cultura” da região e do Estado em função do turismo. Sou testemunha do histórico baixíssimo de violência relacionado às noites de maracatu. Basta ligar a TV no horário infantil pra saber o tanto que se mata de gente em festas de outro tipo em Pernambuco.
O que se quer com essa arbitrariedade? Maracatu no Maracatuzódromo? Carnaval no Shopping? Progresso com mais Ordem?
Proibir a festa do cortador de cana é um crime. Um estupro com a faca na garganta. Um golpe de misericórdia que não mata, mas aleja. Que fazer? Não sei, comecei escrevendo esse pedido de socorro. Maracatuzeiro não usa internet nem Facebook pra mobilizar opinião e fazer protesto. Mas tem voz a ser ouvida. O Poeta José Galdino, na festa interrompida da Cambinda Brasileira, formulou em versos da seguinte maneira:
“A lei em vez de cobrir
Nega nossa cobertura”.
Espero ouvir as vozes dos que poderiam ou deveriam de alguma forma cobrir o povo do maracatu com uma mão acolhedora: Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco? Prefeitos da Mata Norte? Secretario de Cultura do Estado? Governador?
Imagem de Capa: Cavani Rosas
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