polegar opositor ao (Y)

Estado democrático e político precisa de despersonalização, imparcialidade. Contrariando as expectativas, é Cordial o sistema em que vivemos – apaixonado, emocional. Cordial mas passional. Não ecoam os gritos dos “desterrados em nossas terras” (Sergio Buarque de Holanda), mas sim os dos colonos; pois na escolástica deste País não se aprende nem se ensina que “o cigarro é uma invenção dos índios da América do Sul” (Caetano Veloso). Sempre é o “Velho Mundo” estuprando o “Novo Mundo” em 516 anos de prevaricação.

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“Ilha das flores”.

Ao polegar opositor devemos grandes saltos na evolução da espécie. Desde os primórdios ele “permite aos seres humanos o movimento de pinça dos dedos, o que, por sua vez, permite a manipulação de precisão” (Jorge Furtado). Combinado com a observação da natureza, propiciada pelo telencéfalo, o polegar opositor deu vida a pinturas e gravuras e aventuras rupestres – pelejas entre plantas, animais e pessoas ilustradas nas paredes das rochas e cavernas que datam de 40 mil a.C.. Nossos dedos ficam cada vez maiores. Polegar é o novo chacra, de tanta energia friccionada nas telas de touchscreens de tablets e smartphones. Dessa maneira, temos cada vez menos contato com a matéria orgânica. Temos cada vez menos contato.

A cultura popular, por sua tradição e ancestralidade, transmite através do corpo os impulsos naturais humanos. Do polegar opositor ao dedo indicador, o músico Siba procura transferir para a guitarra os acordes dos repentistas das violas nordestinas. “Fui percebendo que o caminho do virtuose, do cara que domina muito o instrumento, não era muito o meu”, registra no documentário Nos Balés da Tormenta (2012), de Caio Jobim e Pablo Francischelli, “eu passei a usar somente dois dedos, como um violeiro, e é uma técnica muito comum também na guitarra africana, de se usar dois dedos somente”. Depois de tanta unha gasta, agora na paleta, Siba se apresentou no programa Cultura Livre, da TV Cultura, e indicou a audição do grupo congolês Kasai Allstars (Beware the fetish, 2014), que de acordo com o pernambucano é composto por músicos de várias etnias que se conciliaram musicalmente na bigband. “É muito fácil perceber a profunda conexão que essa música tem com a nossa música brasileira (…) porque realmente é muito fácil sintonizar com essa música. Pra mim foi imediato perceber o quanto a gente tem disso na nossa história; ao mesmo tempo com perspectiva diferente, com distorção, com saturação, com recursos”, disse ele, sobre o disco africano com sonoridades classificadas como “mesmo psicodélicas – música de raiz” e “mistura surpreendente de primitivo e avant-garde” pela crítica especializada europeia.

Quando não silenciados, os tambores ancestrais africanos, os sopros indígenas, vibram latentes junto aos corpos descendentes há milhões de anos. Desembocam indubitavelmente na criação, se estimulada: um certo ritmo rapidamente incorporado, uma dança, um outro timbre de voz de pronto assimilado. No ensaio futurista A Cidade do Homem Nu (1930), traçando paralelo com o manifesto antropofágico, o arquiteto Flávio de Carvalho defende a “ressurreição do homem primitivo, livre dos tabus ocidentais, apresentação sem a cultura feroz da nefasta filosofia escolástica. O homem, como ele aparece na natureza, selvagem, com todos os seus desejos toda a sua curiosidade intacta e não reprimida”.

Faz falta antropólogos de ascendência negra e indígena para assim revelar os depoimentos, até hoje vilipendiados, o que nos ajuda a compreender mais a nossa antropologia social. “É o próprio antropólogo indígena capaz de narrar a sua história, a sua luta e compreender as relações no mundo contemporâneo em que vive”, apresentou o doutor em antropologia social Tonico Benites, indígena. No mesmo relatório do Fórum de Debates em Antropologia, a mestre em antropologia Leila Martins Ramos acrescentou que “as transformações ocorridas no interior das sociedades estudadas, são o resultado de um processo histórico natural a qualquer grupo e que condiz com a concepção antropológica de cultura, à medida que enfatiza as relações sociais, sendo necessário entendê-lo (o grupo) a partir do que representa para si mesmo”.

A arte e suas tecnologias podem nos auxiliar nesta travessia civilizatória. As novas gerações vêm ao mundo rodeados de luzes, botões e processadores. Submeter-se a programação digital pode jamais deixar de lado a essência humana; deve evocá-la, porém. Quando as novas gerações bordam fitas de LED nas golas do maracatu rural (veja entrevista com o Batebit nesta edição) a compreensão do nosso tempo é afinada.

Registra-se o termo “maracatu” antes mesmo da Lei Áurea; mas a manifestação popular não surgiu com esse nome, que resguarda também uma conotação pejorativa para as reuniões relacionadas às classes subalternas. No caso daquele relacionado às religiões de matriz africana, de baque virado, “maracatu nem tinha nome de maracatu. O nome era nação. Uma ‘nação’ mandava ofício para outro ‘estado’. Surgiu essa palavra pelos homens grandes… quando ouviram os baques chamaram ‘aquele maracatu!’” (Eudes K. Real). Convencionou-se como maracatu as reuniões de negros “para dançar, cantar e possivelmente protestar contra sua situação de opressão, daí eles serem temidos e perseguidos.” (Roseana Borges de Medeiros). Já ao Maracatu Rural, de baque solto, a poesia, a música e a dança conferem um caráter de contestação que é perseguido social e politicamente até hoje – mais uma forma de abafar a identidade e resistência dos filhos desse solo. Nas palavras de um trabalhador rural, lemos no livro Maracatu Rural – lutas de classes ou espetáculo? (2003) um registro oral das origens e finalidades desta brincadeira de gente grande: “porque na época que começou os maracatus, eles faziam aquele samba na senzala em protesto de alguma coisa […]. Eles achavam ruim, ele é feito o índio, quando tão dançando ali, é um protesto”.

Convivemos a todo momento com dissensos políticos e culturais. No Portão do Gelo, comunidade da Xambá, em Olinda, o Grupo Bongar busca fazer da brincadeira do coco uma ferramenta para a melhoria local. “Somos assim, QUILOMBOLAS DE MARRA, porque buscamos muito mais a garantia da memória e ancestralidade que nos foi legada e destinada a mantermos elas tendo como caminho as novas gerações da Xambá”, lê-se em texto postado em sua fanpage. Em 2009, o grupo realizou o Encontro de Tambores: Mitologia, Memória, Música e Tecnologia (Saudação a Ogum), com o ponto de cultura paulistano Casa de Tainã. Foi realizado um intercâmbio entre os músicos do Bongar e a Orquestra de Tambores de Aço da Tainã, através de um trabalho dos mitos do Orixá Ogum, dono dos metais, ferramentas e tecnologia. Na comunidade, foram realizadas oficinas de tambores de aço, tambores da Xambá e de software livre.

Corpos do Norte e Nordeste estão contraídos há centenas de anos, mas mulheres e (privilegiadamente) homens resistem com seu direito a celebrar, fazer seus rituais, despejar suas dores e alegrias: um Homem da Meia-Noite que seja, um Parintins, uma pipoca preta em Salvador. Por isso, as brincadeiras e festas populares sempre foram um instrumento de resistência, de expansividade e permanência. A música é em especial um instrumento de pertencimento físico, pois é direito de todos terem a experiência do transe coletivo, do corpo que reage por impulsos quiçá genéticos. Direito de palpitar em sincronia com o tambor dos peitos quando se “ouve um tambor ancestral tocar” (Beth de Oxum, OC #3).

#tecnotentativas

“A Tecnociência que me vendeu o futuro como a possibilidade de superar a materialidade através do cruzamento da biologia e da informática, pelo processo de digitalização dos corpos e da manipulação genética, vem contribuindo em contrapartida para a manutenção de uma hegemônica de controle e vigilância dos mesmos. A especulação de que a realidade virtual substituiria a realidade material e de que o corpo em vida sofreria um processo de desmaterialização e libertação, ainda está no campo das tecnofantasias.”

Para corroborar com o termo citado pela bailarina Flavia Pinheiro, no parágrafo acima, na Revista Continente, digo que essas “tecnofantasias” estão em campo. Exemplo disso é o próprio trabalho da performer, intitulado 58 indícios sobre o corpo, inspirado nos textos do filósofo francês Jean-Luc Nancy. “A ideia, na verdade, é desespetacularizar a dança, ver o corpo mesmo, o humano, a falha. Nestes tempos de golpe fica difícil falar de filosofia, mas acho que pensar outras metáforas de corpo pode nos ajudar a recomeçar e despadronizar a forma como temos operado no mundo”, revelou em entrevista.

Contato Sonoro (Petrolina) from Colectivo Mazdita on Vimeo.

Para isso, a artista incorpora aos trabalhos “diferentes técnicas que ampliam a ideia da obsolescência programada da vida no corpo”. É como se Flavia, num futuro distópico, visse nas novas tecnologias uma maneira de nos aproximarmos da nossa própria humanidade: “temos que flexibilizar a ideia humanista dos seres humanos e pensar em outras metáforas para corpo e para a vida. Outros planos de imanência para manterem-se vivos”. Nota mental: me recordo a esta altura do clipe “They Don’t Care About Us” (Eles não ligam pra gente, em tradução livre), gravado no Pelourinho (Salvador, Bahia), onde um embranquecido Michael Jackson vibrara com os tambores afrodescendentes do Olodum. Embranquecer para (sobre)viver?

Tecnofantasias se projetam como ficção científica nos longa-metragens  A Mosca (1986, David Cronenberg), este kafkiano, e THX 1138 (1971, George Lucas), distópico. Lentes de contato aumentam expectativa de vida, assim como outras doenças são remediadas, e cada vez mais seres humanos com os corpos frágeis vão nascendo graças à medicina paliativa. Na contramão disso, nas periferias e subúrbio do Grande Recife, quantos torcedores organizados usam óculos e quantos chegam aos 30 anos sem Boletim de Ocorrência e vivo? As modificações genéticas já estão acontecendo de maneiras diversas em seus respectivos grupos, e estamos ficando muito parecidos, apesar da miscigenação:  a) mulheres pobres pretas, b) homem branco hétero etc..

Consideremos que 500 anos abriguem umas 20 gerações de brasileiros miscigenados desde as monções: quantas filhas, mães, avós, bisavós, tataravós paridas? Interrogações que se juntam ao dilema nacional, tantas adversidades diante da diversidade, enquanto ainda engolimos as cinquencentenárias surpresas do português milenar ao chegar na Baía de Todos dos Santos e ver os povos indígenas, humanos em estado bruto, portanto, natural: “e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma” (Caminha). Nós estamos, ao mesmo tempo, muito perto e muito longe do naturalismo.

“Os processos de descoberta pela experiência do corpo são travados pela moral e regras sociais”, comenta a performer Marie Carangi, autora da performance Teta Lírica. A artista explica que o corpo penetra o campo de ressonância do teremim, instrumento eletrônico cujas notas são “aereamente” tocadas: “esse campo reage ao movimento do corpo. As tetas que tão sempre cobertas, que precisam ficar escondidas; nessa roupa que uso são a única parte que fica de fora, exposta. Isso traz outra sensação e sensibilização da Teta, que vem junto com o gesto de sacudir, projetá-las para a frente. A nudez, o gesto de despir e expor esse corpo já é muito – só dizer ou ver que a teta existe, por exemplo. Deixar respirar, levar um ventinho, acostumar a olhar como imagem. Isso eu sinto mais forte com as tetas, mas vale para todo o corpo. Esse tabu que ainda é a nudez”. Carvalho ainda diz: “Viver é raciocinar velozmente e dominar os tabus pela compreensão”.

As concepções cristãs da família tradicional brasileira, assim como da propriedade privada, valores que os colonizadores nos impuseram, poderiam dissolver no xamanismo do “Novo Mundo”. Viver mais que nos pixels, perseguir as sensações da carne e dos ossos são alguns dos desafios contemporâneos que se apresentam às novas gerações de homens e mulheres que sabem (homo sapiens sapiens, cientificamente). Na nossa língua: futebol é paixão nacional porque, além do nosso corpo, mexe também com a nossa fé. Porque é da natureza humana ter esperança.

Publicado originalmente na edição #11 da revista Outros Críticos.

Imagem: Paulo Bruscky

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Karol Pacheco Escrito por:

Jornalista e repórter da revista Outros Críticos. Diretora da Fundação de Cultura de Camaragibe. Roteirista e performer.

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