Por uma discografia nordestina: 1920-1927

Em 1922, com a chegada dos Turunas Pernambucanos à cidade do Rio de Janeiro, inicia-se a segunda onda de música nordestina a tomar conta do Sudeste do país: uma consequência direta do sucesso e influência de artistas como João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense no ambiente cultural carioca, desde a primeira metade dos anos 1910. O auge desta onda se dá entre os anos de 1927 e 1929, com a chegada à capital federal de mais dois conjuntos igualmente criativos e influentes: os Turunas da Mauricéia e o Grupo Voz do Sertão.

A década de 1920 foi um período de transformações significativas na cultura brasileira: o início do radiodifusão, entre  1923 e 1924, no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo; a chegada da gravação elétrica ao país em 1927 (com a utilização de microfones substituindo as antigas gravações mecânicas); a crescente popularidade do samba amaxixado carioca, simbolizado na figura de Sinhô, em paralelo à diversificação dos gêneros musicais absorvidos pela indústria fonográfica; a realização da Semana de Arte Moderna de 22, em São Paulo, e seus inúmeros desdobramentos; e alguns dos primeiros passos da industrialização no Sudeste do país, com o consequente processo caótico de êxodo rural e crescimento dos centros urbanos.

Sem atentar para as mudanças iniciadas ou ensaiadas nesta década e sem considerar a contribuição destes músicos nordestinos na construção do ambiente cultural que se consolidava em torno da indústria fonográfica e do rádio; não é possível compreender a impressionante expansão criativa experimentada nos anos 1930. Se estes nordestinos influenciaram enormemente a geração de artistas que viria a se tornar nacionalmente famosa nos próximos anos, também absorveram muito dos conhecimentos cultivados pelos músicos do sudeste, numa via de mão dupla que acabaria por alimentar o nacionalismo gradualmente institucionalizado e introjetado na mente de tantos brasileiros. Nacionalismo que, de forma contraditória mas também esclarecedora, poucas vezes reconheceu o papel da diversidade cultural (e principalmente musical) na construção de seus próprios alicerces.

Entre os anos 1920 e os anos 1930, os dramas profundos da sociedade brasileira – racismo e machismo, desigualdade e injustiça social, apropriação cultural e concentração de poder – começavam a ser espelhados mais enfaticamente (para o bem e para o mal) na atividade musical profissional. Neste contexto, refletir sobre o papel desempenhado por músicos populares migrantes e por mulheres pioneiras como a cantora, violonista e compositora Stefana de Macedo, pode abrir algumas possibilidades para se compreender mais profundamente o que foi e o que é o Brasil. Mas ficará para o próximo artigo a importante história de Stefana e da segunda leva de conjuntos nordestinos a desembarcarem no Rio, pois o período entre 1920 e 1927 já é suficientemente complexo para ser devidamente contemplado num único e modesto texto.

Para ler o primeiro artigo desta série, acesse este link: https://outroscriticos.com/por-uma-discografia-nordestina-1902-1919/

  1. CORAÇÃO DE CABOCLO (Catulo da Paixão Cearense) – Mário Pinheiro e coro, 1920
  2. JOÃO DAS QUEIMADAS (Catulo da Paixão Cearense) – Mário Pinheiro e coro, 1920
  3. CABOCLA BONITA (Catulo da Paixão Cearense) – Mário Pinheiro, 1920
  4. A ESPINGARDA (Jararaca) – Bahiano, com Turunas Pernambucanos, 1922
  5. CUSCUZ DE SINHÁ CHICA (João Pernambuco) – Bahiano, 1922
  6. VAMOS S’IMBORA, MARIA (Jararaca) – Jararaca, com Turunas Pernambucanos, 1922
  7. PASSARINHO VERDE (Jararaca) – Jararaca, com Turunas Pernambucanos, 1922
  8. ATÉ AS FLORES MENTEM (Catulo da Paixão Cearense) – Vicente Celestino, 1922
  9. GRAÚNA (João Pernambuco) – Oito Batutas, 1923
  10. BORBOLETA NÃO É AVE (Nelson Ferreira) – Bahiano, com Grupo do Pimentel, 1923
Catulo da Paixão Cearense (1863-1946)
Mário Pinheiro (ca. 1880-1923)

1 – CORAÇÃO DE CABOCLO – canção
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Mário Pinheiro e coro
data de lançamento 1920
disco Odeon 121.832

2 – JOÃO DAS QUEIMADAS – samba
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Mário Pinheiro e coro
data de lançamento 1920
disco Odeon 121.833

3 – CABOCLA BONITA – modinha
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Mário Pinheiro
data de lançamento 1920
disco Odeon 121.755

As três faixas escolhidas para abrir esta seleção podem ser entendidas como um desdobramento da primeira moda de música nordestina (ou “sertaneja”) a se disseminar pela cidade do Rio de Janeiro, durante a década anterior, sobretudo a partir do sucesso carnavalesco e fonográfico da embolada “Cabocla de Caxangá”, em 1913. Ao mesmo tempo, levantam algumas questões centrais para a compreensão do ambiente musical nordestino gradualmente transplantado e reelaborado pela indústria fonográfica do Sudeste, na década de 1920.

Assim como no caso da “Cabocla de Caxangá”, os créditos destas faixas (e de várias outras presentes neste artigo) foram registrados exclusivamente em nome do poeta Catulo da Paixão Cearense. Se hoje a controvérsia sobre a autoria da “Cabocla de Caxangá” está relativamente bem resolvida – sendo João Pernambuco amplamente reconhecido como autor da melodia e Catulo o autor dos versos – o mesmo não pode ser afirmado sobre estas gravações menos célebres. Se levarmos em consideração os depoimentos de figuras ilustres como o musicólogo Mozart de Araújo e o compositor Heitor Villa-Lobos – publicados no livro “No Tempo de Noel Rosa”, escrito pelo cantor e radialista Almirante – e as inúmeras coincidências entre as composições atribuídas exclusivamente à Catulo e o vasto repertório tradicional nordestino, nos parecerá óbvia a real origem destas canções. A contribuição de Catulo estaria limitada a escrever (ou reescrever) versos para melodias já existentes, muitas delas ouvidas pelo poeta através da voz e do violão de João Pernambuco. Ainda assim, diferentemente do caso do compositor e violonista pernambucano, os músicos amadores e comunidades que cultivam estas tradições raramente tem advogados e testemunhas tão prestigiosas e empenhadas no reconhecimento justo de suas autorias.

É surpreendente a proximidade da melodia do coro do “Coração de Caboclo” com o tema instrumental executado na sanfona por Luiz Gonzaga, na primeira gravação da toada “A Vida do Viajante” (parceria com Hervê Cordovil lançada em 1953). Seria esta uma velha melodia tradicional, disseminada pela interior do Nordeste? Teria sido ouvida por um Gonzaga ainda garoto e (re)aproveitada, inconscientemente (ou não), alguns anos depois?

Já os versos do refrão do “João das Queimadas” (“pra te levar tenho medo / pra te deixar tenho pena”) viriam a ser ouvidos mais de 70 anos depois na voz de cantoras como Dona Selma do Coco e Glorinha do Coco, residentes na cidade de Olinda (PE). Também foram registrados recentemente numa pesquisa acadêmica, como parte do repertório do grupo de coco do Novo Quilombo, em Gurugi, município do Conde (PB).

Outra questão interessante é a classificação destas duas canções como “samba”, conforme anunciado logo no início dos fonogramas, provavelmente pelo próprio intérprete Mário Pinheiro. Alguns estudiosos já levantaram a possibilidade deste termo ter sido empregado repetidamente pelas gravadoras como uma tentativa de aproveitamento do sucesso comercial recente de “Pelo Telefone” (lançado em disco no ano de 1917, na voz do cantor Bahiano). Por outro lado, é muito significativa a utilização do rótulo “samba” para identificar gravações ligadas à cultura musical do Nordeste (e não apenas da Bahia), desde o início da década de 1910. É o caso das faixas “Mineiro Pau” (1910), “A Viola Está Magoada” (1913) e “Yá Yá Me Diga” (1915), como já apontado no primeiro artigo deste série. Também será o caso de muitas gravações lançadas na década de 1920 por artistas bem sucedidos comercialmente e diretamente ligados à tradição musical do Nordeste, como os Turunas Pernambucanos, os Turunas da Mauricéia, o Grupo Voz do Sertão e a cantora e violonista Stefana de Macedo. Gravações estas que – para um ouvinte do século XXI, iniciado e atento – poderiam ser facilmente identificadas como cocos ou emboladas (e em alguns casos, até mesmo como forrós). O termo “samba” teria – para uma parcela dos músicos pernambucanos, alagoanos e paraibanos do início do século XX – um sentido mais exato e objetivo do que temos sido capazes de perceber atualmente? Teria sido uma designação de gênero musical tão consolidada e específica quanto o “samba de roda” do Recôncavo Baiano ou, posteriormente, o “samba carioca”? Não teria este samba “nordestino” ou “sertanejo” se diferenciado suficientemente dos seus dois parentes mais famosos, ao ponto de ser reconhecido como gênero à parte e não como arremedo de outras tradições?

Para complicar (ou clarear) um pouco mais, na faixa “Cabocla Bonita” – uma canção classificada com modinha, mas que na verdade soa muito mais próxima de um lundu, pela sensualidade e balanço rítmico – um dos versos atribuídos a Catulo diz: “quando tu samba no samba, meu bem…”.

Curiosamente, as únicas informações que localizei sobre os fonogramas “Coração de Caboclo” e “João das Queimadas” são as que se encontram publicadas no site do acervo de música do Instituto Moreira Salles (e que reproduzo aqui). Aparentemente estas faixas não constam na Discografia Brasileira em 78 Rpm (disponibilizada virtualmente pela Fundação Joaquim Nabuco), nem em nenhum outra base de dados disponível na internet.

4 – A ESPINGARDA – embolada
autor Jararaca
intérprete Bahiano, com Turunas Pernambucanos 
data de lançamento 1922
disco Odeon 122.102

5 – CUSCUZ DE SINHÁ CHICA – toada alagoana
autor João Pernambuco
intérprete Bahiano           
data de lançamento 1922
disco Odeon 122.103

Turunas Pernambucanos, 1922. Da esquerda para a direita, em pé: Severino Rangel (Ratinho), Adelmar Adour (Cobrinha), Preá e Jacob Palmieri (Jandaia). Sentados: Romualdo Miranda (Bronzeado), Robson Florence (Sapequinha), José Calazans (Jararaca) e Cypriano Silva (Pirauá). Foto extraída do livro “No Tempo de Noel Rosa”, de Almirante (Ed. Francisco Alves, 1977).
Foto extraída do livro “João Pernambuco: Arte de Um Povo”, de José de Souza Leal e Artur Luiz Barbosa (Funarte, 1982).
Turunas Pernambucanos em 1925, com João Pernambuco (“Pernambuco”) e Felinto de Morais (“Caxangá”) nos violões – da esquerda para a direita, sentados, segundo e quarto,. A anotação equivocada na foto indica o grupo como sendo os “Oito Batutas”. Coleção J. Ranauro / Instituto Moreira Salles
Jararaca na Argentina, em 1925. Foto extraída do livro “Jararaca e Ratinho: A Famosa Dupla Caipira”, de Sônia Maria Braucks Calazans Rodrigues (Funarte, 1983)

6 – VAMOS S’IMBORA, MARIA – samba sertanejo
autor Jararaca
intérprete Jararaca, com Turunas Pernambucanos
data de lançamento 1922
disco Odeon 122.23

7 – PASSARINHO VERDE – coco nortista
autor Jararaca
intérprete Jararaca, com Turunas Pernambucanos
data de lançamento 1922
disco Odeon 122.235

Em 1919, no auge do sucesso do Grupo de Caxangá – organizado entre 1913 e 1914 por João Pernambuco – foi fundado o conjunto Oito Batutas, contando com alguns integrantes do grupo anterior, desta vez liderados pelos jovens Donga e Pixinguinha. Alguns meses depois, o próprio João Pernambuco seria convidado a integrar os Batutas, acrescentado aos choros e valsas do conjunto um repertório fortemente ligado à cultura musical nordestina. No final deste ano, o milionário carioca Arnaldo Guinle bancaria uma turnê do grupo por alguns estados do país: além das apresentações, o grupo deveria aproveitar a viagem para recolher a tradição musical destas regiões para uma antologia que nunca veio a ser publicada.

Em 1921, a turnê chega ao Nordeste e os Batutas apresentam-se no Recife, onde fazem contato com o grupo conhecido como Os Boêmios, que dividia com os cariocas as apresentações lotadas no Cassino Moderno. Os Boêmios, por sua vez, foi um conjunto criado por integrantes do Bloco dos Boêmios – grupo carnavalesco do qual fizeram partes figuras como Felinto, Pedro Salgado e Guilherme Fenelon, mais tarde imortalizados no frevo de bloco “Evocação Nº01”, de Nelson Ferreira; e o violonista e compositor Alfredo Medeiros. Entusiasmados com o talento d’Os Boêmios, João Pernambuco e Pixinguinha incentivaram os integrantes do conjunto a se apresentarem no Rio de Janeiro. Em 1922, já com o nome de Turunas Pernambucanos, chegaram à capital federal para participar da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da independência do Brasil, evento no qual foi realizada a primeira transmissão de rádio no país: um discurso do presidente Epitácio Pessoa.

Imagens extraídas da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Artigo no “Correio da Manhã” (RJ), 20 de abril de 1922.

A ligação entre João Pernambuco e os Turunas se manteria forte: quando chegaram ao Rio os Turunas foram morar na residência do violonista, no centro da cidade, e pouco tempo depois ele seria convidado a integrar o grupo. E da mesma maneira que o Grupo do Caxangá e os Oito Batutas (durante alguns meses, em sua fase inicial), os Turunas apresentavam-se trajados com o que consideravam roupas típicas de sertanejos e cangaceiros, reproduzindo nos palcos um hábito bastante comum no carnaval do Recife daquela época. Suas apresentações no Cine Palais (o mesmo que serviu de palco para a estreia dos Oito Batutas, três anos antes) alcançaram um sucesso impressionante, numa temporada que durou 6 meses e atraiu a atenção e admiração de figuras célebres da sociedade carioca como Rui Barbosa, Armando Guinle e Irineu Marinho.

Os Turunas Pernambucanos foram o primeiro grupo profissional formado a partir de um núcleo de jovens e extremamente habilidosos músicos recifenses, do qual fizeram parte os irmãos Florence (os violonistas Robson e Jayme, mais tarde conhecido como Meira) e os irmãos Miranda (o violonista Romualdo e os bandolinistas João e Luperce), e aos quais se juntaram alguns alagoanos e paraibanos igualmente talentosos. Deste mesmo núcleo surgiriam, poucos anos depois, outros dois grupos fundamentais no processo de mútuas influências entre músicos do Nordeste e do Sudeste, propiciado pelo crescimento da indústria fonográfica e do surgimento do rádio na década de 1920: os Turunas da Mauricéia e o Grupo Voz do Sertão.

Liderados pelo cantor e compositor alagoano José Luiz Calazans (o “Jararaca”, nascido em Maceió, em 1896) e pelo saxofonista e compositor paraibano Severino Rangel (o “Ratinho”, nascido em Itabaiana, no mesmo ano), os Turunas contaram ainda com Romualdo Miranda no violão (o “Bronzeado”), Robson Florence no cavaquinho (o “Sapequinha”), Ademar Adour no pandeiro (“Cobrinha”). Outros músicos também fizeram parte do grupo, mas dispomos de poucas e contraditórias informações: Cypriano Silva no violão (“Pirauá”), Artur Costa ou Artur Chagas (“Sabiá”, ganzá), “Preá” (percussão), José Villela (“Cariry”) e Francisco Abrantes Pinheiro (“Jandaia”). Utilizavam, portanto, uma formação instrumental muito próxima daquela preferida pelos grupos de choro carioca – um ou mais solistas acompanhados por cavaquinho, violões e percussão – e que viria a ficar conhecida como “regional”. Pouco tempo após a chegada ao Rio, João Pernambuco substituiria o violonista Romualdo (que provavelmente teria voltado ao Recife, onde participaria da fundação dos Turunas da Mauricéia, ao lado de seus irmãos), além do também violonista Felinto de Morais (“Caxangá”) e do pandeirista Jacob Palmieri (também apelidado “Jandaia”, e que havia participado dos Oito Batutas).

Ainda em 1922, oito composições dos Turunas seriam registradas em disco pela Odeon (das quais só pude ter acesso a três delas, incluídas neste artigo): quatro composições instrumentais de Ratinho – dois choros, uma mazurca e uma valsa, nenhuma delas disponíveis para audição atualmente – e quatro de Jararaca – dois sambas sertanejos e um coco, além da  embolada “A Espingarda”, originalmente gravada pelo Bahiano, o cantor mais famoso da época, com acompanhamento dos Turunas. Estas três faixas são verdadeiros clássicos da música nordestina gravada, apesar de nem sempre serem lembradas ou devidamente reconhecidas por estudiosos e historiadores da música brasileira. Passados tantas décadas de transformação, imitação e diluição do espírito musical registrado aqui em disco pela primeira vez, dificilmente nos damos conta do impacto causado na indústria cultural carioca por estes músicos até então completamente desconhecidos fora da sua região natal. Ainda assim, poucos ouvintes deixarão de reconhecer a força e originalidade melódica e rítmica do seu repertório, o desembaraço e a vitalidade impressionantes das suas interpretações.

Nestes primeiros registros – produzidos na era da gravação mecânica, quando um cantor precisava praticamente gritar para possibilitar a fixação dos sinais de áudio no disco matriz – ainda não era possível avaliar todo o potencial do Turunas. Talvez o público não iniciado neste repertório só venha a ter a dimensão exata do que representava a força destes músicos ao ouvir as gravações feitas por Jararaca e Ratinho no final da década, quando foi iniciada a era da gravação elétrica no Brasil, permitindo maior fidelidade sonora aos registros.

Jararaca era um cantor excepcional: assumia corajosamente um timbre vocal oposto ao dos grandes cantores da época como Vicente Celestino e Francisco Alves, e exibia um domínio absoluto da linguagem musical dos coquistas, emboladores e cantadores de viola com os quais teve contato direto durante sua infância e juventude. Foi um precursor do cantores de voz “pequena” que se revelaram extremamente habilidosos e precisos no trato do ritmo, inventivos e sutis no improviso melódico e muito claros na dicção. Alcançou o mesmo nível de excelência de cantores que o sucederam, como Manezinho Araújo, Minona Carneiro, João Gilberto, Jackson do Pandeiro e Jacinto Silva. Basta comparar as gravações solo de Jararaca com as tentativas de Bahiano ou Francisco Alves (e tantos outros menos célebres) de enveredar pelas emboladas para se ter ideia de como o alagoano estava à vontade pra travar e destravar a língua e ainda se divertir no meio do caminho.

Ratinho, assim como Jararaca, foi um grande compositor: ambos prezavam pela simplicidade, fluência e comunicação imediata com o público, sem renunciar à consistência e originalidade da invenção. Não é tarefa fácil criar canções extremamente populares que mantém intactas sua beleza oito ou nove décadas depois de lançadas. Ratinho foi também um dos primeiros saxofonistas brasileiros a imprimir sua marca e estilo ao instrumento. Sua maestria incomum no sax soprano o levou ser muito admirado por instrumentistas como Altamiro Carrilho, Abel Ferreira e Paulo Moura.

Após uma excursão a São Paulo e a Buenos Aires, o grupo se dispersaria, mas os seus principais solistas, Jararaca e Ratinho, continuariam a se apresentar com sucesso entre o Sul e o Sudeste do Brasil. Em 1929, depois de alguns anos afastados da indústria fonográfica e da capital federal, voltariam a gravar seu próprio repertório (em dupla ou como solistas), desta vez aproveitando o auge da segunda onda de música nordestina no Rio – moda que eles haviam ajudado a criar sete anos antes, e que agora tinha o reforço dos também fundamentais Turunas da Mauricéia e Voz do Sertão, além de inúmeros artistas influenciados por estes. A partir daí, Jararaca e Ratinho se estabeleceriam, no decorrer de mais de cinco décadas de carreira artística, como compositores, intérpretes e humoristas enormemente criativos e habilidosos.

Uma curiosidade: obviamente não é coincidência que a faixa “Cuscuz de Sinhá Chica” tenha sido gravada pelo Bahiano na mesma época (talvez na mesma sessão) do clássico “A Espingarda”, e também com provável acompanhamento (não creditado) dos Turunas. Anunciado como samba nortista no fonograma original e como toada alagoana no rótulo do disco, a faixa teve sua autoria creditada exclusivamente à João Pernambuco. O refrão “Coco dendê trapiá, tá no jeitinho de embolar” voltaria a ser gravado em 1930 pela cantora carioca Elise Houston e em 1953 pelo pernambucano Manezinho Araújo, sendo creditado nas duas ocasiões como “motivo popular” e “folclore”, com arranjo dos cantores, e classificada em ambas como coco.

8 – ATÉ AS FLORES MENTEM – canção
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Vicente Celestino
data de lançamento 1922
disco Odeon 122.215

Uma das melodias mais belas entre todas as registradas em nome de Catulo, esta modinha recebeu versos elegantes do poeta, sem dúvida um dos mais atuantes e consistentes letristas de sua geração. É evidente aqui o contraste com o estilo mais simples e despojado que ele costumava imprimir aos versos dos sambas, toadas e emboladas, que começou a abordar a partir do convívio com João Pernambuco, iniciado 10 anos antes. Nesta versão, a interpretação um tanto dramática de Vicente Celestino não chega a ofuscar a leveza e o brilho da melodia. A autoria da parte musical é eventualmente creditada a Juventino Rosas, de quem não pude encontrar mais informações – seria este Juventino o compositor e violinista mexicano do final do século XIX? A canção voltaria a ser gravada por Francisco Alves em 1928, desta vez em interpretação mais serena e contida, com um arranjo mais próximo das toadas sertanejas tão voga no final da década.

Oito Batutas em trajes semelhantes ao do Grupo de Caxangá, inclusive com apelidos nas abas dos chapéus. Coleção Pixinguinha / Instituto Moreira Salles.
Oito Batutas com João Pernambuco. Extraída do livro “Uma História do Samba: As Origens”, de Lira Neto (Companhia das Letras, 2017).
Oito Batutas com João Pernambuco. Extraída do livro “João Pernambuco: Arte de Um Povo”, de José de Souza Leal e Artur Luiz Barbosa (Funarte, 1982).

9 – GRAÚNA
autor João Pernambuco
intérprete Oito Batutas
data de lançamento 1923
disco Victor (Buenos Aires, Argentina)

Primeira composição instrumental de João Pernambuco a ser registrada em disco, o choro “Graúna” acabaria por se tornar uma de suas obras mais famosas e características. Gravada pelos Oito Batutas durante turnê pela Argentina em 1923, sem a participação do próprio João Pernambuco, a composição foi registrada num arranjo de polifonia intricada, com destaque para os impressionantes frullatos improvisados pelo flautista Pixinguinha. Com contornos melódicos e soluções rítmicas muito originais, “Graúna” é um dos documentos fundamentais para a compreensão das trocas culturais entres os músicos do Nordeste e do Sudeste, processo que contribuiu para as transformações do choro carioca nas primeiras décadas do século XX e que ajudou a popularizar esta gênero entre os artistas nordestinos das gerações seguintes.

10 – BORBOLETA NÃO É AVE – samba
autor Nelson Ferreira
intérprete Bahiano, com Grupo do Pimentel
data de lançamento 1923
disco Odeon 122.384

Nelson Ferreira (1902-1976).
Bahiano (1870-1944). Arquivo Nirez

Ao lado da gravação de “Yá Yá Me Diga” – canção de Raul Morais, precursora dos frevos de bloco recifenses e lançada por Geraldo Magalhães em 1915 – “Borboleta Não é Ave” é um registro pioneiro das marchas cantadas no efervescente carnaval pernambucano. Cultivadas em um contexto histórico e cultural bastante distinto daquele em que surgiram as marchinhas cariocas, as marchas pernambucanas da primeiras décadas do século XX iriam desaguar nos clássicos frevos de rua e frevos-canção lançados nacionalmente a partir dos anos 30.

Nascido em Bonito, no agreste de Pernambuco, em 1902 e radicado no Recife, Nelson Ferreira tornou-se músico profissional aos 15 anos. Entre o final dos anos 10 e o início dos anos 20 já trabalhava como pianista e regente de orquestra nos cinemas mudos da cidade. Primeira criação do jovem compositor a ser fixada em disco, “Borboleta Não É Ave” ainda não tem a ousadia e inventividade que ele viria a alcançar nas décadas seguintes, mas permanece na memória de qualquer folião com experiência no carnaval de Pernambuco. O pioneirismo, longevidade, criatividade e influência de Nelson Ferreira na construção da música carnavalesca pernambucana é equivalente ao papel desempenhado em outros gêneros por nomes como João Pernambuco, Jararaca e Ratinho, Luperce Miranda, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro ou a Banda de Pífanos de Caruaru.

Mais uma vez a estreia de um compositor nordestino na industria fonográfica carioca seria efetivada através da voz do  Bahiano, talvez por conta da rara versatilidade deste intérprete. E, como de costume na época, a composição ganharia uma versão instrumental lançada praticamente ao mesmo tempo da original. Esta gravação tinha a interpretação do Grupo do Pimentel, o mesmo que acompanha Bahiano na versão cantada, mas desta vez seria classificada curiosamente como samba. Diferentemente do que aconteceu com outras formas musicais, o frevo pernambucano teria de esperar até a década de 40 para ser registrado por intérpretes nordestinos com verdadeira experiência nesta linguagem tão específica, com a chegada ao Rio de Janeiro do paraibano Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara.

  1. CRISTO NASCEU NA BAHIA (Sebastião Cirino – Duque) – Artur Castro, com coro e American Jazz Band de Sílvio de Souza, 1926
  2. EU FUI VIAJAR (Sebastião Cirino – Duque) – Artur Castro, com Orquestra Jazz Band Pan American do Cassino de Copacabana, 1926
  3. COPACABANA (Francisco A. da Rocha) – Artur Castro, com Orquestra Jazz Band Pan American do Cassino de Copacabana, 1926
  4. MIMOSO (João Pernambuco) – João Pernambuco, com Rogério Guimarães, 1926
  5. LÁGRIMAS (João Pernambuco) – João Pernambuco, com Rogério Guimarães, 1926
  6. SONS DE CARRILHÃO (João Pernambuco) – João Pernambuco, com Nelson Alves, 1926
  7. CANÇÃO DO CEGO (Catulo da Paixão Cearense) – Patrício Teixeira, 1926
  8. BENTEVI (Catulo da Paixão Cearense) – Patrício Teixeira, 1926
  9. ARUÊ! ARUÁ! (Catulo da Paixão Cearense) – Patrício Teixeira, 1926
  10. “SEU” ZÉ RAIMUNDO (Olegário Mariano) – Patrício Teixeira, 1926
  11. ADEUS, QUIMA! (Catulo da Paixão Cearense) – Patrício Teixeira, 1926
  12. AJUEIA, CHIQUINHA! (João Pernambuco) – Patrício Teixeira, 1926
  13. CRATO (João Pernambuco) – Patrício Teixeira, 1926
  14. JANDAIA (João Pernambuco) – Patrício Teixeira, 1926
  15. “SEU” COITINHO, PEGUE O BOI (João Pernambuco) – Patrício Teixeira, 1926
  16. EU VI UMA LAGARTIXA (Hekel Tavares) – J. Gomes Júnior, 1926
Duque (1884-1853).

1 – CRISTO NASCEU NA BAHIA – maxixe
autor Sebastião Cirino – Duque
intérprete Artur Castro, com coro e American Jazz Band de Sílvio de Souza
data de lançamento 1926
disco Odeon 123.124

Sebastião Cirino (1902-1968).

2 – EU FUI VIAJAR – maxixe
autor Sebastião Cirino – Duque
intérprete Artur Castro, com Orquestra Jazz Band Pan American do Cassino de Copacabana
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.160

3 – COPACABANA – samba
autor Francisco A. da Rocha
intérprete Artur Castro, com Orquestra Jazz Band Pan American do Cassino de Copacabana
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.161

Paralelamente à chegada dos pernambucanos, alagoanos e paraibanos ao Rio, um núcleo de artistas baianos conseguiu se estabelecer na indústria fonográfica e no ambiente cultural carioca durante a década de 1920. Não era um grupo ligado diretamente às comunidades baianas que foram responsáveis pelo cultivo do samba de roda e suas derivações no Rio de Janeiro a partir do final do século XIX, tronco cultural que produziu nomes como Donga, João da Baiana e Sinhô. Aparentemente, estes “novos baianos” faziam parte de um outro estrato social, com mais acesso à instrução formal e recursos financeiros: o violonista e compositor Josué de Barros, o ator e compositor De Chocolat (anteriormente conhecido como Jocanfer) e o bailarino, compositor e jornalista Duque. Foram precedidos pelo também baiano Artur Costa, cantor que já tinha uma carreira consolidada no Sudeste, com discos lançados no desde 1910, e com quem Duque e Josué já tinham excursionado pela Europa, na mesma década.

Duque (nascido em 1884 em Salvador) chegou ao Rio aos 22 anos, diplomado como dentista, mas logo aproximou-se do teatro e da dança, tornando-se um bailarino respeitado, desistindo então da carreira na odontologia. Especializado em danças brasileiras como o maxixe, chegou a fazer bem-sucedida carreira internacional, sendo um dos responsáveis pelas apresentações dos Oito Batutas em Paris, em 1922. Novamente estabelecido no Rio de Janeiro, em 1926, estreou na indústria fonográfica em duas parcerias com o trompetista e compositor mineiro radicado no Rio, Sebastião Cirino, gravadas originalmente por Artur Castro.
O maxixe “Cristo Nasceu na Bahia” é uma das primeiras e mais marcantes sínteses das musicalidades cariocas e baianas a serem registradas em disco. Com uma linha melódica cativante e uma letra bem humorada, antecipou algumas das imagens arquetípicas da Bahia que viriam a ser exploradas nas composições de Dorival Caymmi e Ary Barroso a partir dos anos 30. Tornou-se um dos maiores sucesso no carnaval de 1927, e foi regravada diversas vezes nas décadas seguintes por músicos como Pixinguinha, Canhoto e Abel Ferreira.

Já o samba amaxixado “Copacabana”, também interpretado por Artur Castro, foi composto por Francisco Antônio da Rocha, autor de clássicos como “Cangerê” e “Papagaio Come Milho”, que ficou conhecido também como “Chico da Baiana”, mas sobre quem há poucas informações disponíveis. Esta faixa foi incluída nesta seleção não por conta de uma possível origem ou ascendência nordestina do compositor, mas sim pela interessantíssima coincidência do seu refrão com um dos cocos gravados pela Missão de Pequisas Folclóricas de 1938, na Baía da Traição, reserva indígena no litoral norte da Paraíba. Intitulado “Quando a Maré Vai, Vai”, o coco tem em seu refrão os mesmos versos do samba “Copacabana”, com a diferença de uma única palavra: ao invés de “morena”, os coquistas paraibanos cantam “caboca”. Nas duas gravações, estes versos são entoados num ritmo praticamente semelhante – de forma que podemos considerá-las como variações sobre o mesmo tema – mas o refrão paraibano tem um contorno melódico ainda mais marcante e amplo do que o da versão carioca.

João Pernambuco (1883-1947) em 1926. Acervo de Valdinea Monteiro Rodrigues.

4 – MIMOSO – maxixe
autor João Pernambuco
intérprete João Pernambuco, com Rogério Guimarães
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.070

“Lágrimas” em 78 Rpm, 1926.

5 – LÁGRIMAS – maxixe
autor João Pernambuco
intérprete João Pernambuco, com Rogério Guimarães
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.071

6 – SONS DE CARRILHÃO – choro
autor João Pernambuco
intérprete João Pernambuco, com Nelson Alves
data de lançamento Dez/1926
disco Odeon 123.165

Se João Pernambuco tivesse se limitado apenas a ser um elo pioneiro entre o repertório tradicional do Nordeste e a indústria cultural e fonográfica do Sudeste, já teria um lugar de destaque na história da música brasileira do início do século XX. Como compositor e violonista, João Pernambuco foi muito além: realizou uma síntese inédita entre a linguagem do choro carioca e o estilo muito particular das toadas, cocos, emboladas e sambas nordestinos, com ampla liberdade de invenção e um equilíbrio estético muito apurado. Não é possível imaginar suas criações sem a contribuição profunda de qualquer um destes troncos culturais. Já não é apenas nordestino, mas também não se reduz à imitação do espírito carioca: um novo Nordeste e um novo Rio de Janeiro nasceram da sua imaginação.

Sua obra para violão é um marco da música instrumental brasileira: partindo essencialmente de uma cultura fundamentada na tradição oral e pouco compreendida e valorizada fora do seu ambiente original, foi reconhecida e muito elogiada por artistas de formação erudita. Há algumas décadas faz parte do repertório de violinistas clássicos em âmbito internacional. A sofisticação e a sutileza das composições de João Pernambuco não foram alcançadas em prejuízo da fluência, clareza, força e vitalidade tão próprias das tradição musical nordestina. Pelo contrário, é do domínio destas qualidades, também presentes no universo dos chorões cariocas, que surgem as refinadas soluções estéticas que tornam sua obra tão original e singular.

Nas quatro primeiras composições gravadas pelo próprio compositor, o acompanhamento fica por conta de dois grandes instrumentistas: o violonista paulista radicado no Rio, Rogério Guimarães – em “Mimoso” e “Lágrimas” – e o cavaquinista carioca Nelson Alves – integrante do Grupo de Chiquinha Gonzaga e fundador dos Oito Batutas, que adiciona à gravação original de “Sons de Carrilhão” um contraponto inusitado, pouco explorado nas inúmeras versões posteriores. Uma destas faixas (“Magoado”) não se encontra facilmente disponível para audição, mas seria regravada pelo próprio compositor em 1929 e lançada em 1930, junto com outras de suas peças instrumentais. Já o “Sons de Carrilhões” – ou “Sound of Bells”, como passou a ser conhecida internacionalmente – é uma das peças instrumentais brasileiras mais famosas mundo afora, com inúmeras interpretações e arranjos por parte de músicos norte-americanos, europeus e asiáticos.

Artigo no “Correio da Manhã” (RJ) em 12 de dezembro de 1926. Da esquerda para a direita: João Pernambuco, Patrício Teixeira (violão), senhorita Lydia, Catulo da Paixão Cearense (de pé) e Nelson Alves (cavaco). Imagem extraída da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
Patrício Teixeira (1893-1972).

7 – CANÇÃO DO CEGO – modinha
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento 1926
disco Odeon 122.962

8 – BENTEVI – modinha cateretê
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento 1926
disco Odeon 122.964

9 – ARUÊ! ARUÁ! – toada nortista
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento 1926
disco Odeon 123.135

Olegário Mariano (1889-1958).

10 – “SEU” ZÉ RAIMUNDO – toada sertaneja
autor Olegário Mariano
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento 1926
disco Odeon 123.136

11 – ADEUS, QUIMA! – toada nortista
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento 1926
disco Odeon 123.137

12 – AJUEIA, CHIQUINHA! – embolada
autor João Pernambuco
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.144

13 – CRATO – canção sertaneja
autor João Pernambuco
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.145

14 – JANDAIA – canção sertaneja
autor João Pernambuco
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.162

15 – “SEU” COITINHO, PEGUE O BOI – embolada
autor João Pernambuco
intérprete Patrício Teixeira
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.163

Amigo de João Pernambuco desde o início da década de 1910, o cantor, violonista e professor de violão carioca Patrício Teixeira estreou em disco em 1926, e rapidamente tornou-se uma das maiores referências na interpretação da então chamada música “sertaneja”. Com um timbre vocal singular – potente, como se exigia na época, mas não demasiadamente polido – aliado à destreza e ao balanço do seu violão, Patrício passeava com grande desenvoltura pelo repertório que lhe foi apresentado por João Pernambuco desde o início de seu convívio, quando ainda eram músicos amadores.

Das dezesseis faixas gravadas por Patrício em 1926, quatro foram creditadas à Catulo da Paixão Cearense, quatro à João Pernambuco e uma à Olegário Mariano – poeta nascido no Recife em 1889, mas radicado no Rio de Janeiro ainda criança. Ainda assim, é possível que parte destas peças sejam antigas canções tradicionais do Nordeste ou adaptações mais ou menos fiéis de Pernambuco e Catulo para cocos, emboladas, toadas e sambas de autores não identificados.

Além da evidente proximidade destas canções com o repertório tradicional nordestino – como atesta a gravação do motivo “Ajueia, Chiquinha” feita pelo musicólogo carioca Luiz Heitor Corrêa de Azevedo entre coquistas no litoral do Ceará, em 1943 – os depoimentos publicados pelo cantor e radialista Almirante no seu livro “No Tempo de Noel Rosa” levantam sérios questionamentos sobre a origem das canções registradas unicamente em nome de Catulo. O musicólogo  cearense radicado no Rio de Janeiro, Mozart de Araújo, chegou a afirmar que “Catulo, apesar de possuir um bom ouvido, não era um compositor.”  Segundo o depoimento do professor Sylvio Salema, uma das canções interpretadas por Patrício Teixeira – “Bentevi”, creditada a Catulo – seria na verdade uma criação de João Pernambuco.

Hekel Tavares (1896-1969).

16 – EU VI UMA LAGARTIXA – cateretê
autor Hekel Tavares
intérprete J. Gomes Júnior
data de lançamento Nov/1926
disco Odeon 123.258
matriz 1078

O pianista, compositor, arranjador e regente alagoano Hekel Tavares – nascido em Satuba em 1896, criado em Maceió e radicado no Rio em 1921 – foi um dos primeiros músicos nordestinos de formação erudita a transitar com naturalidade entre os ambientes da indústria fonográfica, da pesquisa folclórica, do teatro de revista e da música de concerto. No melhor de sua produção, conseguiu criar algumas obras que desafiam as classificações e fronteiras entre os gêneros, ao absorver o idioma das músicas de rua do Nordeste e combiná-lo com a polidez da canção feita para o rádio e o disco, e com os conhecimentos técnicos do tradição erudita ocidental. Algumas canções antológicas trazem a marca da abrangência de sua formação: “Casa de Caboclo”, “Azulão” (ambas em parceria com Luiz Peixoto), “Favela” e “Guacira” (com Joracy Camargo). Curiosamente, as duas primeiras composições estiveram envolvidas em controvérsias sobre a sua autoria: a primeira com Chiquinha Gonzaga e a segunda (mais uma vez) com João Pernambuco.

No ano de sua estreia no teatro de revista e na indústria fonográfica, a segunda obra gravada foi “Eu Vi Uma Lagartixa”, na interpretação do canto J. Gomes Júnior (sobre quem não pude encontrar mais informações). Embora classificada como cateretê e registrada exclusivamente em seu nome (como de costume na época), na verdade esta era uma adaptação de um coco tradicional muito conhecido no Nordeste. Entre 1928 e 1929, em sua viagem para estudar a música tradicional do Nordeste, Mário de Andrade chegou a anotar em partituras (posteriormente publicadas no livro “Os Cocos”) 04 versões diferentes do coco/embolada “Redondo Sinhá”, duas colhidas no Rio Grande do Norte e duas na Paraíba. E numa destas versões paraibanas, o coquista Odilon do Jacaré inicia todas as suas estrofes com o verso “Eu vi uma lagartixa” ou com a variante “Eu vi ôta lagartixa”. Já a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 chegou a gravar na cidade de Pombal, no sertão paraibano, o coquista Manuel Antônio da Silva entoar o refrão “Eu vi outra lagartixa / é no rochedo, sinhá”, com a mesma melodia cantada por Patrício doze anos antes.

  1. ALBERTINA (Duque) – Francisco Alves, com Orquestra Pan American do Cassino Copacabana, 1927
  2. PASSARINHO DO MÁ (Duque) – Francisco Alves, com Orquestra Pan American do Cassino Copacabana, 1927
  3. NÃO QUERO SABER (Antônio Lago – Duque) – Francisco Alves, 1927
  4. CHOÇA DO MONTE (Catulo da Paixão Cearense) – Paraguassu, com Grupo do Canhoto, 1927
  5. E NADA MAIS… (Hekel Tavares) – Roberto Vilmar, 1927
  6. CABOCLA BONITA (Catulo da Paixão Cearense) – Patrício Teixeira, com Rogério Guimarães, 1927
  7. A CASINHA PEQUENINA (Motivo popular) – Patrício Teixeira, com Rogério Guimarães, 1927
  8. POETA DO SERTÃO (João Pernambuco – Catulo da Paixão Cearense) – Patrício Teixeira, com Rogério Guimarães, 1927
Francisco Alves (1898-1952).

1 – ALBERTINA – marcha
autor Duque
intérprete Francisco Alves, com Orquestra Pan American do Cassino Copacabana
data de lançamento Jul/1927
disco Odeon 10.001-A
matriz 1162

2 – PASSARINHO DO MÁ – samba
autor Duque
intérprete Francisco Alves, com Orquestra Pan American do Cassino Copacabana
data de lançamento Jul/1927
disco Odeon 10.001-B
matriz 1163

3 – NÃO QUERO SABER – samba
autor Antônio Lago – Duque
intérprete Francisco Alves, com Orquestra Pan American do Cassino Copacabana
data de lançamento Jul/1927
disco Odeon 10.001-B
matriz 1163

O primeiro disco lançado comercialmente no Brasil, em 1902, trazia um compositor baiano, Xisto Bahia, interpretado pelo  conterrâneo Bahiano. Coincidência ou não, 25 anos depois, o primeiro disco lançado no país com gravação através de microfones – técnica de gravação elétrica e não mais exclusivamente mecânica, com qualidade muito superior – caberia ao cantor mais famoso da época, o carioca Francisco Alves, apresentando duas músicas inéditas do também baiano Duque: a marcha “Albertina” e o samba “Passarinho do Má”.

Se “Albertina” não sugere pontos de contato muito nítidos com a música produzida no Nordeste – aproximando-se mais   da linguagem cosmopolita dos teatros de revista – por sua vez o “Passarinho do Má” tem um sabor inegável de samba baiano, com toques de maxixe carioca. Se introduzida em qualquer roda de samba no Nordeste, certamente o “Passarinho do Má” seria admitida como uma canção tradicional ou pelo menos como uma novidade naturalmente derivada do espírito  desta tradição.

A meio caminho dos maxixes, do samba baiano e do teatro de revista, “Não Quero Saber” é um parceria de Duque com o violinista, compositor, e regente paulista Antônio Lago (pai do ator e compositor Mário Lago). Assim como nas outras duas faixas, Francisco Alves é aqui muito bem acompanhado pela Orquestra Pan American do Cassino Copacabana. Juntamente com as faixas de Artur Castro com acompanhamento do mesmo conjunto (e também da American Jazz Band  de Sílvio de Souza), estes são alguns dos melhores exemplos de música dançante arranjada para orquestra, já com forte espírito brasileiro, prenunciando o trabalho fundamental de arranjadores como Pixinguinha e Severino Araújo nas décadas seguintes.

Paraguassu (1898-1952).

4 – CHOÇA DO MONTE – choro
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Paraguassu, com Grupo do Canhoto
data de lançamento 1927
disco Odeon 10.027-A
matriz 1204

Mais uma bela melodia de autor desconhecido com versos de Catulo, “Choça do Monte” é interpretada pelos paulista Paraguassu com acompanhamento de Canhoto e seu excelente grupo. Apesar de classificada como choro, esta toada em compasso ternário foi uma das primeiras a sugerir um certo ar de nostalgia sertaneja combinada à polidez da classe média urbana. Um estilo que viria a ser frequentemente cultivado entre o final dos anos 20 e o início da década de 30, na voz de intérpretes como Francisco Alves e Gastão Formenti, e na pena de compositores como Hekel Tavares.

Roberto Vilmar (1900-1970).
Adelmar Tavares (1888-1963).

5 – E NADA MAIS… – canção
autor Hekel Tavares
intérprete Roberto Vilmar
data de lançamento Nov/1927
disco Odeon 10.059-B
matriz 1349

Eis aqui um exemplo da produção inicial de Hekel Tavares, combinando o espírito da composição erudita ocidental com a canção popular brasileira. Se o contorno melódico e a textura do arranjo nos remetem a algumas peças de compositores românticos como Tchaikovsky, o tema de sua poesia reflete a onda de idealização da vida no interior do Brasil, algo muito comum entre a geração de artistas nacionalistas das primeiras décadas do século XX. Não deixa de ser interessante a coincidência entre o título e verso final desta canção com um dos trechos da letra de “Casa no Campo”, composição de Zé Rodrix e Tavito gravada e popularizada por Elis Regina em 1972.

Interpretada solenemente pelo barítono paulista Roberto Vilmar, a composição não teve sua letra devidamente creditada na época de seu lançamento. Seus versos são da autoria do poeta, jurista e professor pernambucano Adelmar Tavares, nascido no Recife em 1888 e radicado no Rio de Janeiro em 1910, e que chegou a ingressar na Academia Brasileira de Letras em 1926.

6 – CABOCLA BONITA – canção
autor Catulo da Paixão Cearense
intérprete Patrício Teixeira, com Rogério Guimarães
data de lançamento Nov/1927
disco Odeon 10.064-A
matriz 1376

7 – A CASINHA PEQUENINA – modinha
autor Motivo popular
intérprete Patrício Teixeira, com Rogério Guimarães
data de lançamento Nov/1927
disco Odeon 10.064-B
matriz 1377

8- POETA DO SERTÃO – canção
autor João Pernambuco – Catulo da Paixão Cearense
intérprete Patrício Teixeira, com Rogério Guimarães
data de lançamento Dez/1927
disco Odeon 10.082-A
matriz 1379

Este é mais uma série de canções de autoria controversa interpretadas com maestria por Patrício Teixeira, desta vez com o acompanhamento do grande violonista Rogério Guimarães. Uma delas é a regravação da “Cabocla Bonita”, uma canção com ares de lundu, com versos atribuídos a Catulo da Paixão Cearense, já registrada em 1920 na voz de Mário Pinheiro – e que provavelmente ganhou aqui sua versão definitiva. No mesmo disco, Patrício registrou a célebre modinha “Casinha Pequenina”, canção de autoria e origem incertas que se tornaria muito popular no carnaval pernambucano ao ser aproveitada pelo compositor Capiba como parte do seu frevo homônimo, lançado em 1939 na voz de Carlos Galhardo. Já a faixa “Poeta do Sertão” soa como uma curiosa versão da controversa “Cabocla de Caxangá”, com outra letra e desta vez com os devidos créditos para João Pernambuco. Um elemento interessante nesta gravação é o motivo de acompanhamento executado repetidamente no violão mais agudo – a partir do segundo refrão – e que remete diretamente a um toque muito comum (ainda hoje) entre os violeiros do samba de roda do Recôncavo Baiano.

FONTES
Acervo de Música do Instituto Moreira Salles (IMS)
www.acervo.ims.com.br/
Base de Dados da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ)
http://bases.fundaj.gov.br/disco.html
Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB)
http://www.immub.org/
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Arquivo Nirez
http://arquivonirez.com.br/
Goma-Laca
http://www.goma-laca.com/
Coleção Sandor Buys
https://sandorbuys.wordpress.com/
Coleção Gilberto Inácio Gonçalves
https://www.youtube.com/channel/UCCKzn_6PjBrnqZRZOYo9vsA/videos
Enciclopédia da Música Brasileira: erudita, folclórica, popular. Art Editora Ltda, 1977.
João Pernambuco: Arte de um Povo. José de Souza Leal e Artur Luiz Barbosa, Funarte, 1982.
Jararaca e Ratinho: A Famosa Dupla Caipira. Sônia Maria Braucks Calazans Rodrigues, Funarte, 1983.
No Tempo de Noel Rosa. Almirante, Livraria Francisco Alves Editora, 2ª Edição, 1977.
Os Cocos. Mário de Andrade, preparação, introdução e notas de Oneyda Alvarenga. Livraria Duas Cidades / Instituto Nacional do Livro, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.
Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938: Música Popular do Norte e Nordeste. Caixa com 6 CDs e livreto, Centro Cultural São Paulo / Sesc SP, 2007.
Uma História do Samba: As Origens. Lira Neto, Companhia das Letras, 2017.
Feitiço Decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), Carlos Sandroni, Jorge Zahar Editora / Editora UFRJ, 2001.
A Canção no Tempo. 85 Anos de Músicas Brasileiras, Vol. 1: 1901-1957. Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, Editora 34, 7ª edição, 2015.
Música Popular: Do Gramofone ao Rádio e TV. José Ramos Tinhorão, Editora 34, 2ª edição, 2014.

Imagem de capa: João Pernambuco e amigos, Teresópolis (RJ), 1924. Foto extraída do livro “João Pernambuco: Arte de Um Povo”, de José de Souza Leal e Artur Luiz Barbosa (MEC/Funarte, 1982).

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Caçapa Escrito por:

Compositor, arranjador, produtor musical e violeiro nascido no Recife (PE) em 1975, e radicado em São Paulo (SP) desde janeiro de 2014. Cursou Licenciatura em Música na Universidade Federal de Pernambuco, entre 1997 e 2001. Durante a gradução (incompleta), participou da fundação do Núcleo de Etnomusicologia da UFPE e da Associação Respeita Januário – Pesquisa e valorização dos cantos e músicas tradicionais do Nordeste. Escreveu artigos para as revistas Sounds and Colours Magazine (Inglaterra), Outros Críticos (PE), +Soma (SP), e para o lançamento do disco “Thiago França”, do Passo Torto e Ná Ozzetti. Atualmente desenvolve o projeto "O Coco-Rojão e as Violas Eletrodinâmicas: Pesquisa e Criação" aprovado no edital Rumos Itaú Cultural 2015-2016.

6 Comentários

  1. 1 de julho de 2017
    Responder

    magnifico! parabèns!
    depois visite nosso Vitrola minha vitrola!
    abç

  2. Gilberto Inácio Gonçalves
    23 de julho de 2017
    Responder

    Muito bom artigo. Análises bastante pertinentes.

  3. André Rocha
    26 de julho de 2017
    Responder

    Caro amigo, muito boa sua postagem! Será que vc teria como conseguir a letra do “Vamos simbora Maria”, dos Turunas Pernambucanos?
    Obrigado pela sua atenção! Abrs André

  4. Claudevan Melo
    14 de setembro de 2017
    Responder

    Excelente resenha

  5. VAVÁ O CABELEIRA
    26 de outubro de 2017
    Responder

    Um soberbo trabalho de pesquisa — por demais interessante, em seu texto!….Parabéns…..Veio para enriquecer a literatura, sobre a música regional nordestina,e sua influência na música popular sudestina!

  6. Billy Magno
    19 de abril de 2020
    Responder

    Bravo! Texto primoroso e importantíssimo. Pesquisa cuidadosa e detalhista.

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