por Carlos Gomes.
“Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,
Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar.”
SARGAÇOS, Wally Salomão
temas e fissuras
De dentro da sala pouco aconchegante do local de trabalho da personagem a quem iria entrevistar, e que tratarei, neste texto, simplesmente como Ela (pronome pessoal que muitas vezes se acomoda aos corpos por obstinação e força de vontade sem tamanho, como veremos no decorrer dessa escritura, que é como prefiro batizar este sujeito de gênero fronteiriço), meu moleskine com capa de Bob Dylan, o turbante colorido e a camisa envelhecida de Paul McCartney que Ela vestia, de saída deram luz e cor para a nossa presença nesse ambiente frio para quem deseja escreviver sobre noiadas, niggers, travestis, transexuais e todas as outras personagens que cotidianamente nascem, morrem ou estampam capas, cadernos e reportagens de jornais e programas de TV a repetir roteiros e conclusões. No entanto, Ela consegue se mover pela experiência sensível das personagens e histórias que escreve e penetrar as fissuras da imensa máquina de produzir notícias que a muitos alimenta, mas também assombra. Distender os temas para além do senso comum arraigada num discurso crítico, com linguagem sedutora e provocativa, faz parte de seu escopo conceitual que, ao mesmo tempo em que amarra o leitor – o cativa –, também o sufoca, estrangula, marca o corpo com todas as dores que emanam do que Ela desloca do ordinário: literatura. Portanto, desatar os nós que nos amarram às histórias e personagens é um caminho de torto prazer que vai de nós ao Outro.
A voz d’Ela embarga, muda o tom, o volume, a intensidade, mesmo antes de a entrevista começar, quando me pergunta se eu havia lido o livro O nascimento de Joicy – Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem (2015), motivo principal de nosso encontro. Eu entendi aquele embargo, a sua hesitação. Quantas conversas sobre livros, discos, filmes são travadas sem que uma, duas, três leituras tenham sido feitas antes? Tratei de oferecer os motes da conversa que iria começar, as obsessões que nasceram dentro de mim depois de conhecer as histórias imbricadas entre Ela, a escritora-repórter, e Joicy, a trans-personagem. Com os motes, a minha confirmação da leitura e releitura daquelas histórias. Eu leio por imagens, por isso devo também ter lido coisas que Ela provavelmente não escreveu. Como obsessão, a imagem do jornalismo como uma grande máquina de produção segundo a segundo se erguia sobre mim. No corpo da máquina algumas fissuras permitiam escritas-rotas-de-fuga, deslocamentos da ordem natural, cotidiana. Ela desfez minha obsessão sobre fissuras e começou a nossa conversa destacando os temas com os quais lida no jornalismo, e que deles o jornalismo trata como fatos ordinários, em suma, assuntos batidos: Drogas, sexualidade, transexualidade, exploração sexual, violência contra a mulher, feminicídio etc. O que Ela faz ao tratar desses temas é tirá-los do roteiro habitual com que são abordados diariamente.
— Ontem mesmo tinha uma matéria falando de uma travesti que foi assassinada no Recife, que ficava num ponto de prostituição. Não raramente você vai ver travestis e transexuais no âmbito da prostituição, como se isso fosse um dado natural. Mas, por exemplo, você não pensa que travestis, de fato, 90% vão se prostituir porque não têm mercado de trabalho pra elas. E Joicy ganha essa atenção porque ela não é uma transexual como a gente está acostumada a ver uma transexual. Que inclusive é um espanto, de certa maneira meu, na própria reportagem, quando eu digo que não percebi que ela era ela. Ela levantou a mão e disse que ia fazer a cirurgia, mas eu achava que fosse um rapaz que tivesse acompanhando uma das transexuais que estavam lá. Eu acho que os temas que eu abordo não são exatamente novidade, estão na ordem do jornalismo, mas eu tento trazê-los desnaturalizando a maneira como eles são trazidos.
jornalismo e alteridade
Ao folhear as páginas do livro para me mostrar as imagens da roça de mandioca onde Joicy trabalhava, seus olhos brilharam ao me contar que a sua primeira visita a Alagoinha, na antiga casa de Joicy, no campo do Magé, foi muito reveladora para o processo de construção do livro. A epifania d’Ela ao ver Joicy lhe contar como arrancava mandioca com os irmãos e irmãs lhe fez ver o quanto a figura de Joicy desconstruía os arquétipos do feminino, em como a ex-agricultora à sua frente era uma mulher transgressora. Por isso, estranha até mesmo às outras pacientes à espera da cirurgia, como ela. Por consequência, o caminho de construção d’O Nascimento de Joicy também era cercado de dúvidas e suspeições das pessoas que estavam ao redor d’Ela, se Joicy era realmente a personagem que deveria nascer em sua história. Mas de onde vinham, principalmente, essas vozes de suspeição? Reflexão que só pude ter depois de me deparar com a transcrição do áudio de nossa conversa. Ainda assim, o “Outro” que se move por toda a sua narrativa, como um carimbo conceitual que a todo o momento nos arranca de nossas posições de leitores, possivelmente passivos, permaneceu em minhas anotações como destaque.
— Houve um momento em que eu não via muita animação das pessoas que estavam ao meu redor com relação a ela. Eu pensava: “Será que eu estou insistindo numa história que está muita na minha cabeça?”. Não é fácil que as pessoas entendam que uma história é importante. Ainda mais quando ela não tranquiliza. Porque parece que as histórias têm que tranquilizar. As pessoas ficam mais OK, né? Mas quando a história não tranquiliza, não apazigua o que você já está querendo ver…
— Uma coisa que você faz muito no texto é mostrar o Outro com o ‘o’ maiúsculo.
— Quando eu falo “o outro”, até me incomoda, por isso eu boto o ‘O’ maiúsculo, até como um pedido de desculpa. Mas é pra sugerir essa importância que eu dou e, ao mesmo tempo, entendendo que tem o lugar do outro, mas o outro sou eu. É algo que não está resolvido pra mim, eu tenho que escrever muita coisa pra achar que talvez eu consiga resolver isso.
a personagem que se move
Ela e Joicy. As tensões nunca se dissolvem, mas se transformam, com o tempo, com os novos desdobramentos, em ferida e cicatriz. Fiz a leitura do miolo do livro num único fôlego. O que corresponde à reportagem que posteriormente geraria o livro. Nessa leitura, nunca pude me desprender da ideia de que a grande força da obra é perceber as nuances da relação que há entre a personagem e a narradora. Joicy e Ela. Ao deparar-me no capítulo seguinte com a acusação de que Ela estava ficando com o dinheiro que deveria ser de Joicy, um corte entre as duas se dá. O título “Aproximação e distanciamento” é preciso.
— Todas as personagens permanecem com o autor.
— É. Na escrita, você começa a tratar essas pessoas como personagens. Nem fonte. Vira um personagem literário, de certa maneira. A gente começa a transformar também as pessoas do cotidiano em personagens literários. Não que a ficção não faça isso; faz o tempo todo. Mas a gente não pode esquecer que de certa maneira há uma instrumentalização das pessoas e eu procuro sempre me lembrar disso. Acho que muito do cuidado que temos de ter com o texto enquanto jornalista deriva de um mea-culpa da instrumentalização dos personagens. Instrumentalizar, eu não falo como uma coisa negativa, especificamente. Por exemplo, um texto como o de Joicy, que tem suas fragilidades, traz um olhar para a figura dela e das transexuais que é muito interessante, no sentido de desconstruir uma ideia fixa, pequena, que não traz nenhuma situação de agência para as transexuais, não é vitimista também. Acho que essa matéria como outras promovem, ou procuram promover, esse cano de escape. Acho que a tensão sempre vai existir, vai estar presente. O ponto-chave é você se perceber como o responsável por essa construção e esperar do beijo, do afago, do prêmio, a pedra na cabeça do que vem depois.
poéticas da criação
Sem cortes. Nós dois falando sobre escrita, escolhas, edição, música. Joicy permanece entre nós ou Segundo dia. Alguns cortes. Nós dois falando sobre escrita, escolhas, edição, música. Joicy permanece entre nós ou
— Como você reflete sobre a escolha de cada título (e subtítulo) do livro? Por exemplo, “Algum dinheiro para garantir algum amor”. Se esse título realmente diz o que você quer sobre o texto; ou o que Joicy poderia pensar sobre ele…
— Não.
— Como é essa construção? Por exemplo, terminar o livro com “Corpo fechado”.
— Eu adoro edição. Gosto de edição instigante. A edição tem que chacoalhar também. Eu não penso exatamente o que a personagem vai achar, mas nunca foi intenção minha fazer um título que trouxesse constrangimento ou dor pras personagens. No Casa-Grande & senzala tem um título que é “A ‘noiada’ é o negro do mundo”, em cima da frase de John Lennon “A mulher é o negro do mundo” (Woman Is the Nigger of the World). Patrícia, que é uma das personagens, chegou pra mim e disse: “Tia, eu não gostei desse título, não. Não gostei disso aqui, não, que você escreveu. Ficou todo mundo mangando de mim”. Aí é foda. Como vou dizer pra ela que era John Lennon fazendo uma crítica do lugar da mulher e que eu estava usando uma frase dele. Eu disse, expliquei pra ela que era isso. Mas tem uma coisa aí, que eu não posso ficar me censurando. Elas se chamam de “noiada” entre elas mesmas. No texto tem dizendo isso: “Ah, tia, tu acha que os cara vão querer pagar direito à ‘noiada’? Não vão, não.”. Então, em nenhum momento elas disseram que não gostavam que chamassem de “noiada”. Claro que eu entendo que o filtro sou eu. Porque esse lugar de desprestígio dela nessa palavra “noiada” elas também já naturalizaram. Eu entendo que é preconceituoso. Nesse sentido, eu uso a “noiada” justamente pra pontuar essa crítica. Isso vai estar aberto pro mundo. Você escreve uma obra e as pessoas podem se sentirem pouco representadas. Mas eu costumo intitular a edição de uma maneira geral, conceitualmente, e querer que ela provoque muito, ou ter alguma poética. O título que você citou, “Algum dinheiro para garantir algum amor”, talvez outras pessoas intitulassem simplesmente “Namorado” ou botasse “Amigo (entre aspas) tenta usurpar”. Uma coisa simplesmente direta, que não seria mentirosa, mas que eu acho que aí, sim, ia ferir. Sabe? Eu posso dizer a mesma coisa, ser contundente, mas sem furar o olho de ninguém.
— Dentro dessa poética, tentar fazer com que o texto tenha um tipo de literariedade. Assim, na reportagem, tem o uso da narração, em primeira pessoa. Por exemplo, tem uma parte que você opta por deixar só os diálogos. Algumas antecipações pro leitor, em que você fala para prestar a atenção no “amigo” que lá na frente…
— Voltaremos a falar sobre ele… (risos)
— Acho que é uma técnica, não de forma tão explícita, que o romance faz. Ou mesmo no cinema. Isso é uma aproximação com a literatura, das coisas que você lê, de autores que acompanha e gosta da linguagem que eles usam?
— Eu tenho pensado muito sobre isso, porque quando me perguntam, fico pensando quem é que eu trago. Na verdade, eu voltei a ler agora. Passei muito tempo me dedicando à vida acadêmica, sete anos entre doutorado e mestrado, e minhas leituras são muito voltadas pra essas questões da tese de dissertação. Então, ler a literatura que podia me trazer uma experimentação ou de investimento poético não estava muito presente nessas minhas últimas décadas, quase. Embora que tinha continuado a ler, mas muito solto. Eu nunca fiz oficinas, por exemplo. Nunca burilei a escrita, digamos assim. Eu acho que de certa maneira eu encontro numa reportagem um espaço muito interessante de escrita. Quando estou escrevendo é engraçado porque eu começo a ler e penso como eu – me desgarro de mim – como leitora gostaria de ler a matéria de forma interessante. Que narrativa podia me prender? Que maneira de contar? Os Sertões mesmo, eu estava tão enfiada na tese que o texto é denso, é pesadão. Quando leio, chega me dá agonia às vezes. Eu gosto, mas ele é muito pesado. Depois dele, eu percebo que eu comecei a me soltar mais. Quando fui fazer Joicy eu não precisava de tanto rebuscamento, tanta exuberância. Eu quis escrever Joicy de uma maneira mais… Em primeira pessoa, colocar os diálogos – claro que são editados, mas de uma forma mais integral. Então, eu nunca pensei num autor que eu goste ou usar de uma técnica.
— John Lennon entra. Muita coisa de música.
— Muito. Eu falo que é jornalismo de interface, porque a música é muito presente em minha vida. Gosto de trazer ela e as coisas do cotidiano. Trazer a música que escuto, ou leio ali e aqui. Fazer essa costura. Mas eu acho também que as próprias situações que são vividas se impõem na escrita, digamos assim. Isso pra mim é muito claro em Joicy e em Casa-Grande & senzala. Onde é que um texto mesmo ia ser mais preciso do que a Patrícia falar: “Tu tá falando merda. tu já viu puta ser feliz?”. Nada que eu escrevesse ia… Então eu comecei a matéria com isso. Não era pra se dizer “oh, meu Deus, a matéria”. Não, porque era o lugar que eu estava. O que eu estava vivendo. Ninguém falava “é tantos reais pra transar, fazer amor”. Não. “É cinco reais pra metê”. Era assim que as meninas falavam. Então, a situação se impõe. Ela não precisa de mim, na verdade.
cássia cazuza eller
Estou identificado com esse entre-lugar porque eu é um Outro. Entre mim e Elas a suspenção de palavras distrai narrativas que me escapam. Consigo transcrever o que as vozes dizem. Mas todo o resto que está suspenso poderá ser capturado por essa re-leitura que faremos entre todos nós nós atados e desatados – desculpe o trocadilho –, pois escrever sobre o Outro nunca será zero a zero de contradições.
— Cássia Eller gravou um disco com músicas de Cazuza produzido por Wally Salomão. E ele falou que não seria um disco de Cássia Eller gravando Cazuza, mas “Cássia Cazuza Eller”. Como se ela incorporasse, de alguma forma, o personagem (Cazuza). Então, eu não vou escrever um ensaio sobre Joicy, mas sobre “Fabiana Joicy Moraes”. É mais ou menos essa a ideia.
— (risos) Tá. Boa ideia. Eu acho que o livro é isso.
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #8 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Arte de capa: Shiko
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