Quantas vezes o cinema há de morrer?

Uma fotografia, feita em 1865, retrata o jovem Lewis Payne. Ele tentara assassinar o Secretário de Estado dos Estados Unidos, W. H. Seward. O fotógrafo Alexander Gardner encontrou Payne algemado na cela, aguardando o momento em que seria enforcado. Sobre ela, Roland Barthes escreveu: “Eu leio ao mesmo tempo: isso vai acontecer e isso já aconteceu”. O estupor: Payne vai morrer, Payne já está morto.

Olhe nos olhos de Payne. O cinema é como ele. O cinema é a morte trabalhando, como dizia Jean Cocteau.

O cinema morre toda vez que alguém atende o telefone celular durante uma sessão. Ou quando sentam ao seu lado com uma caixa do Habbib’s cheirando a fritura, mastigando como se fora a última refeição antes do apocalipse. Mas essas são mortes menores, indignas. São mortes do cinema que acontecem ali, ao nosso lado, naquele determinado dia.

O cinema morre mesmo é quando morrem seus mestres. Quando morrem os seus autores… O termo “autor” é envenenado, sabemos todos, bombardeado pelo relativismo cultural vigente.

Durante seus anos de origem, duas ou três décadas a partir de 1895, quase ninguém se importava muito com quem tinha feito os filmes. Importavam sobretudo as histórias, as estrelas. Nos anos 1950, sob a inspiração de André Bazin e de Alexandre Astruc, parte da crítica francesa começou a intuir a diferença: alguns realizadores se singularizam, deixam marcas formais ou temáticas. Todo filme se Hitchcock trata da culpa; todo plano de Kubrick homenageia a perspectiva artificial.

O filósofo Gilles Deleuze tinha uma maneira curiosa de explicar esses traços singulares, ao dizer que a diferença autoral de Robert Bresson era a maneira como ele encenava as mãos dos seus personagens. Todo mundo pensa longo em «Pickpocket». Ademais, François Truffaut profetizava assim: “O filme do amanhã parece-me ainda mais pessoal do que um romance individualista ou autobiográfico… O filme do amanhã não será dirigido por ‘funcionários públicos’ da câmera, mas por artistas… Será semelhante à pessoa que o fizer”.

Há opiniões contrárias. Sempre há. Falam de Teoria do Autor como sendo “datada”; falam que remete a perspectivas “eurocêntricas”; alegam a ilegitimidade dos panteões, aglomerados de deuses do cinema “artificialmente” instituídos…

A verdade é que, de vez em quando – só de vez em quando… -, sentado no escuro de uma sala de cinema, olhando as imagens e ouvindo os sons, se possível longe de frituras e celulares, você tem certeza de que encontrou com alguém que merece sua atenção. Presentes-ausentes a um só tempo, nos deparamos com realizadores que têm, como dizia Torquato Neto, um “coração selvagem”.

Torquato Neto evocava Clarice Lispector, num dos trechos mais cinematográficos que ela escreveu, praticamente descrevendo a beleza de estar diante de um filme:

“… a única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais […] Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.”

É isso, portanto. Certos espectadores diante de certos filmes têm um “coração selvagem”. Torquato Neto dizia assim: “Coração selvagem e a todo vapor: tela livre. De todos os círculos. Filmes novos, invenção. […] Contra todas as dificuldades e todos os grilos e todas as espécies de diluição. Rigor. Em superoito, em cinemascope, nos cinemas: cinema.”

Bem mais tarde, Belchior fez uma canção em que dizia: “e o meu coração selvagem tem essa pressa de viver”. Ou de morrer. O cinema morre toda vez que morre um coração selvagem.

“24 Frames”, de Abbas Kiarostami.

Abbas Kiarostami, por exemplo, tinha o coração selvagem e matou o cinema em julho de 2016. Matou e agora o ressuscita com «24 Frames», um filme que recoloca o espectador como em dezembro de 1895. Trata-se de um conjunto de planos contemplativos (e “contemplação” é uma outra dimensão que o relativismo cultural adora atacar, adora acusar de anacronismo). Kiarostami deixou como herança essa sequência de planos fixos de quatro minutos cada. Entre eles, apenas um letreiro: Frame 1, Frame 2, Frame 3… Quase não aparecem humanos nas imagens, e quando surgem eles não se movem. Carneiros, cavalos, cães, lobos… Na verdade, a rigor, nem são planos filmados. Abbas Kiarostami usou de fotografias e pinturas que foram animadas digitalmente de maneira extremamente detalhada. Diz-se que ele demorou seis semanas para animar cada um dos frames. Aquilo que já latejava em «O Gosto da Cereja», de 1997, agora ressuscita forte em «24 Frames».

Diante do filme apresentado em Cannes, Vasco Câmara, crítico do jornal português Público escreveu um texto lindo chamado “E a vida continua, melancolicamente, sem Abbas Kiarostami”: “São 24 ‘cenas’, duas horas de filme, realismo imaginado, fabricado e animado, como se uma natureza-morta desenrolasse, sem precisar de autorização humana, a sua vida própria — é a melancolia que vai tomando conta da experiência de assistir a «24 Frames», de detectar vestígios dos homens (por exemplo, nas janelas de casas e de carros que enquadram e contemplam a neve, o mar, os animais, as vacas, os antílopes, os pombos), mas a narrativa a prosseguir apesar deles, apesar dos tiros que ecoam na neve, dos carros que ameaçam a reunião das aves… novas possibilidades de história, portanto.”

O cinema morre. A vida continua. O cinema não se entrega. Como Corisco, em «Deus e o Diabo na Terra do Sol». Não se entrega porque o fantasma de Abbas Kiarostami não permite.

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Paulo Cunha Escrito por:

Nasceu no Recife, em 1956. Ainda estudante secundarista, participou, a partir de 1973, do ciclo de cinema super-8 do Recife, realizando curtas experimentais. É graduado em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e foi repórter, crítico de cinema e editor, entre outros, no Jornal da Cidade, Jornal da Tarde [SP], O Estado de S. Paulo e Jornal do Commercio. Também foi editor de criação na Rede Globo de Televisão. Tem Doutorado em Artes na Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne. Professor na Universidade Federal de Pernambuco, ensina no Bacharelado em Cinema e Audiovisual e no Programa de Pós-graduação em Design. Publicou “A Aventura do Baile Perfumado: vinte anos depois” (2016, com Amanda Mansur), “A Imagem e seus Labirintos: o cinema clandestino do Recife, 1930-1964” (2014) e “A Utopia Provinciana: Recife, Cinema, Melancolia” (2010).

Um comentário

  1. Afonso J Oliveira Je
    27 de maio de 2017
    Responder

    Lindo esse texto, professor Paulo. Preciso ver 24 frames e me recuso a ser ao lado de um comedor de pipoca. Há que ser em um cinema como o que você fará nascer na UFPE. Aguardo. O cinema vivo e de coração selvagem.

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