
por Bruno Vitorino.
Comunicar é compartilhar sentido. Para instrumentalizar essa condição primordial de sua existência particular e coletiva, o Homem inventou para si a linguagem. Estabelecendo os símbolos, valores e significados e definindo as regras de sua organização, formatou um sistema de representação cultural que o permitiu não apenas significar a estranha realidade que se desnudava diante de si, mas também estabelecê-lo como indivíduo inserido numa coletividade que se reconhece através desses signos. Nesse sentido, o idioma, as palavras, as notas musicais são códices solidificados pela cultura nos quais o indivíduo se expressa e se faz compreender perante os demais. Contudo, reside nessa articulação entre o Eu e o Todo um paradoxo: ao se utilizar dessa linguagem preestabelecida, o Homem, para se exprimir, vê-se enjaulado nos regramentos convencionados a ela pelo sistema de significado da cultura e na gama de valores os quais aciona. Assim, para se fazer cognoscível, espera-se que uma sentença interligue sujeito/verbo/complemento ou que uma canção possua forma definida, melodia cantarolável e letra relacionada às experiências banais do cotidiano. No entanto, a liberdade do discurso poético agride a pretensão cerrada e estanque do significado, ao fazer das margens da linguagem seu campo de batalha. “O poeta”, no dizer de Ortega y Gasset, “aumenta o mundo, agregando ao real, que está por si mesmo, um continente irreal”. Irreal, logo íntimo, particular, seu; mas que deseja, sobretudo, comunicar. Eis o terreno em que a banda Rua fincou seus alicerces estéticos.
O grupo formado por Caio Lima (voz e eletrônicos), Hugo Medeiros (bateria e marimba de vidro), Nelson Brederode (cavaquinho), Yuri Pimentel (contrabaixo) e Bruno Giorgi (guitarra) vem se consolidando como um dos mais interessantes trabalhos da cidade. Numa inquietação sediciosa ante os preceitos da canção, a Rua questiona os ditames estabelecidos pela relação rotineira entre ritmo/harmonia e melodia/letra que há muito vêm seduzindo e se assenhorando do ouvido ocidental. O ritmo enquanto pulso firme e imutável, a harmonia vertical que ampara um desenho melódico que se estabelece como a força motriz da canção e invólucro das palavras na paisagem imaginária da forma têm seu ordenamento sabotado. Em seu lugar, há a riqueza da polifonia e o emaranhar de suas vozes na busca por algum direcionamento harmônico, o uso dos espaços como liga na arquitetura dos temas, a melodia que, ao carregar nos ombros o fardo da poesia, tal como Atlas a segurar o éter, dialoga com o ritmo que se estabelece como o elemento central do desenvolvimento temático em seus ciclos assimétricos. Dessa forma, ao se valer de uma obscura sensibilidade estética que mira o risco e o desconhecido, a Rua ressignifica a música ante o panorama atual da cultura de massa, dando-lhe novos sentidos.
Na sequência do ótimo álbum de estreia, Do Absurdo (2011) e seu mergulho no disparate da criação artística, essa emulação de Deus, a banda apresenta Limbo. Fruto de aprovação no Funcultura, o disco traz as reflexões sobre o devir, a audácia de não mais ser o de outrora na busca perene por outras direções expressivas, afirmando no desvelo presente em cada tema que, na Arte, repetir-se é desvanecer. Pondo de lado o aspecto mais orgânico do primeiro álbum, o grupo investe nos recursos eletrônicos e overdubs na criação de seu universo irreal. Destaque para “Caverna” com o conflito métrico estabelecido pelo ostinato do baixo que acentua os tempos a seu gosto, pela bateria que inquire a hegemonia do pulso e pelo cânone das vozes na reapresentação da forma, produzindo, assim, uma ambiguidade rítmica hipnótica; e para o lirismo abrasivo de “Ortopedia”.
Indispensável!
Publicado originalmente em agosto de 2014, na 4ª edição da revista Outros Críticos.
Foto de capa do site: Rose Lima – “na porta da canção, com a boca cheia dos clichês” – impressões sobre o limbo
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