Repetir, variar, alucinar: entrecrítica sobre ‘De Baile Solto’

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Foto: José de Holanda

por Bernardo Oliveira.

Entrecrítica é uma crítica construída sobre uma conversa entre o crítico e o artista.

De Baile Solto pode ser descrito a partir da consolidação de um longo processo de descolonização: vivificar ritmos, territórios, visões do paraíso, processos imaginativos, tecnologias particulares que, longe dos refletores, pareciam definhar. O ambiente do qual os vídeos no Youtube são testemunha (procurem, por exemplo, a sambada que reúne Mestre Anderson Miguel e Mestre Dedinha) não escondem aquilo que o trabalho de Siba vem buscando reaproveitar, reconstituir: um olhar descolonizado sobre o calor da rua, das manifestações populares do Nordeste, sobretudo o Maracatu e a Sambada que habitam a Zona da Mata de Pernambuco. Abolir as categorias generalizantes e os processos de petrificação operados pelos centros de produção intelectual, substituindo-os por uma imagem vibrante e afirmativa calcada sobre procedimentos de captação, síntese e invenção. Descolonizar também implica em atravessar fronteiras, oscilar entre diversos pontos de vista, desestabilizar visões categóricas do global e do local, promover interseções entre aspectos atuais e virtuais. No disco anterior, Siba cantava: “Quem parte berrando Avante! pode cair mas não volta!”. Não há o que recuperar, não há o que interpretar: tudo é expressão, afirmação de um aqui-e-agora potente e promissor, varado pelo passado e pelo futuro.

Siba concebe o Maracatu de Baque Solto como uma expressão oposta ao senso comum do “Folclore” e das ideias de “Cultura Popular”, “Manifestação” etc. Para se afastar dessas ideias, refere-se constantemente ao termo “tecnologia social e artística”, ainda que desconfiado de seu alcance. Trata-se aqui de ressaltar as qualidades técnicas e criativas embutidas no modo de organizar a festa, de improvisar as estrofes e acompanhá-las com instrumentos característicos, conduzindo a rapaziada a um estado mental coletivo incomparável. Pode-se dizer que, desancorado das representações que o mantém preso ao campo do tradicional e do folclórico, o Maracatu de Baque Solto só pode ser compreendido como experiência presente e concreta, desempenhada por detentores de certos modos de fazer correntes. Essas técnicas adquirem singularidade a cada nova apropriação, constituindo-se não como um modelo, mas como expressão imediata. Siba se nutre dessas técnicas particulares, e, com uma banda habituada a reinventá-las (a Mini Desorquestra de Baile Solto e Rima), constrói seu universo híbrido e povoado. E isso a partir da experimentação in loco ou da reutilização de suas técnicas particulares — poéticas, musicais, sonoras, coletivas, afetivas — mescladas ao jazz, à música africana, ao rock.

Assim, detecta-se em De Baile Solto, algumas premissas provenientes do trabalho de Siba, a começar pela relação entre ritmo e palavra que marca a estrutura e a sonoridade do disco. Vale ressaltar a qualidade proveniente da relação entre métrica e rima nas composições, a instrumentação ditada pelo ritmo da palavra. Não se trata de contar compassos, mas de submeter o ritmo da composição, dos arranjos e até da harmonia ao ritmo da palavra. A métrica e a rima, o ritmo das palavras, ditam o ritmo da composição e da apresentação. Uma estrutura fixa nas estrofes, uma combinação de métrica e rima de modo a formar padrões dentro da estética da poética oral do Nordeste, mesmo quando não repete nenhum dos formatos tradicionais de estrofe. Essa qualidade se torna mais evidente em canções como o maracatu de baque solto “Quem e Ninguém” (que conta com a presença ilustre do trombone de Bocato), os quartetos de “Gavião”, a ciranda em “Mel Tamarindo”. Mas repara-se essa técnica de forma mais complexa em “Meu Balão vai voar” (a métrica das palavras determinando a grade rítmica) e “Marcha Macia”, que conta com modulações em suas estrofes, uma grade rítmica próxima a de um maracatu de baque virado, seguida de uma levada mais roqueira no refrão e a finalização em ritmo de baque solto. A título de exemplo, reparem que as sílabas fortes no final das estrofes de “Marcha Macia” marcam justamente as síncopes nervosas do Maracatu de Baque Virado:

“Vossa Excelência, nossas felicitações
É muito avanço, viva as instituições!
Melhor ainda com retorno de milhões
Meu deus do céu, quem é que não queria?”

Sobre esta composição amparada no ritmo da palavra, vale destacar uma segunda natureza das canções em De Baile Solto: o aprofundamento jazzístico, com forte influência da matriz africana presente na instrumentação. Desdobramentos de ritmos que estão na palavra ou, segundo Siba, “alucinações devido ao consumo excessivo de ritmo”. Nas partes instrumentais é possível entrever que na maioria das vezes o que se escuta é a primeira ideia, a primeira solução, o improviso. O objetivo pragmático é repetir as formas simples impressas pelo ritmo da palavra para produzir variações e, assim, alucinar. A influência geral nesse processo é a música congolesa, mas o método também se encontra em Nova Orleans e no Free Jazz.

Em “Mel Tamarindo” são mais de dois minutos de uma onda instrumental, o gravão da tuba de Leandro Gervázio pontuando o improviso coletivo com uma frase melódica. O trançado de xilofone e bateria executados por Antonio Loureiro em “Três Desenhos (Nascente e o Resto)” segue nessa direção, descentralizando a regularidade do ritmo, picotando a grade rítmica para repicar sobre os versos de longa duração. A relação da percussão de Mestre Nico com os demais instrumentos é de uma natureza semelhante, ora servindo de base para o privilégio da canção, ora se abrindo para as variações da improvisação. Recurso básico de música africana, tanto na aplicação do ritmo das palavras à instrumentação, como na exploração da onda instrumental.

A poética original de Siba persegue algumas temáticas habituais em seu trabalho, como a nostalgia familiar que impregna os versos coloquiais de “Três Carmelitas” (“Flutuar suspende as dores, te sonhar reacende as cores”), o lirismo da observação de características próprias da paisagem da Zona da Mata (“Meu Balão Vai Voar”, “Gavião”), o humor troca-letras em “A Jarra e a Aranha”, o arroubo evocativo de “O Inimigo Dorme”, que conta ainda com o violão incontestável de Kiko Dinucci. Um disco de frases, cantadas, articuladas entre si ou operando como engrenagem, a palavra é a referência propriamente musical. É uma palavra cantada que canta pela boca de outros instrumentos, que faz com que a própria voz se torne instrumento.

Em De Baile Solto desponta um Siba político em uma direção mais radical, em conformidade com o contexto acirrado que marca a atualidade da política nacional. O ritmo da palavra, a alucinação por repetição e improviso, conectam-se a uma visão combativa da política. No começo deste ano, causou indignação a proibição da Sambada dos Maracatus além das 2h da manhã, medida adotada pela Polícia Militar em cidades da Zona da Mata. Siba foi um dos pontas-de-lança do contramovimento vitorioso. Somado a esse ocorrido, a destruição do Centro Histórico de Recife promovida pela Prefeitura local e pelo poder imobiliário, preconizada pelo caso do Cais José Estelita, Santa Rita e Cabanga, reforça a necessidade de expor uma poética mais irônica e agressiva. A visão de Siba pode ser classificada como combativa porque não se limita a combater a lei injusta, aquela que promove pobreza e a desigualdade, mas também a lei que restringe o direito ao delírio e à embriaguez.

Não há nenhuma reivindicação mais poderosa do ponto de vista político do que aquela que reconhece o direito a uma imaginação delirante, mesmo restrita a um momento da vida como a Sambada. O direito dos enlouquecidos, dos aluados, dos poetas, daqueles que nasceram “com o jeito e a cor de quem nasceu para não ter nadinha”, como lemos nas linhas irônicas de “Quem e Ninguém”. A Sambada é um desses modelos vivos com os quais Siba trabalha, modelo ilimitado de acoplamento invenção/alucinação, que só encontra restrição pelo poder econômico e o racismo institucional. Parte do disco é devotado a dar corpo a uma sequência de faixas que introjetam esse poder de renovação da rua, de “Quem e Ninguém”, passando pelo instrumental que dá título ao disco (com participação impagável do locutor Samuel Black), até eclodir no frevo de carnaval “A Jarra e a Aranha”.

Está claro há tempos que Siba não é o intérprete da cultura, o arauto do resgate, o mantenedor do patrimônio. Siba, um nome. Nome de artista, artista-território atravessado por muitas correntes, estradas, meios de transporte, conexões e justaposições. Neste território cabe o calor da rua e o formato pop, a sambada e a levada, a cachaça e o “suco de cevada”. Atentemos para as indicações visuais providas pela indumentária: em Avante, a sobriedade veste calça e camiseta em cores habituais, ao passo que em De Baile Solto, Siba se veste como um brincante psicodélico, carregando o mundo nas costas, arrastando poeira de chão e estrela, levando consigo não só as representações habituais, mas sobretudo as experiências.

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Produzido por Siba e gravado na YB, traz figurino do Mestre Nico e Siba, com projeto gráfico de Guilherme Luigi. Entre as participações estão presentes Caçapa, Kiko Dinucci, Bocato, Samuel Black, Cosmo Antônio e Maurício Badé. A “ mini desorquestra” é formada por Siba, Leandro Gervázio, Mestre Nico , Lello Bezerra e Antônio Loureiro.

Avante marcava a conversão por redução, conduzindo o ouvinte do calor imediato da Fuloresta a uma instrumentação calculada, matemática, que derivava de células do maracatu, da ciranda. De Baile Solto conjura ambas as soluções: captar o calor da rua e da sambada, traduzi-lo através de canções sintéticas, misturando células rítmicas provenientes de muitos gêneros e estilos dissolvidos em dinâmicas de festa, improviso, amizade: ação.

Sim, ação. No interlúdio em “Meu Balão Vai Voar”, faixa de encerramento, guitarras, tambores e apitos ambientam uma brincadeira entre amigos ébrios que trocam mumunhas: “vamos embora?”, “pra onde rapaz, para onde?”. Enquanto o mundo contemporâneo se compraz em sofrer diante dessa pergunta, Siba parece usá-la como matéria-prima para construir sua obra. Como o balão que erra pelos céus ao sabor das condições climáticas, amigos buscam o que fazer, para onde ir, e se perguntam: como tirar o nariz da lama? A resposta é clara: para onde se pode ir, se não avante? O balão, elemento presente na paisagem da Mata Norte, encarna uma versão renovada da voz que enuncia: “Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar”. Procurar uma saída, uma linha-de-fuga, mesmo sem saber pra onde, mesmo que não se vá longe, sem rumo. De baile solto. Ou como Siba canta em “O Inimigo Dorme”:

“Se encolhermos até ser
Impossíveis de esmagar
Dá-se um jeito de escapar
Sem fugir.”

Publicado originalmente na revista Outros Críticos #8 – versão da revista on-line | versão da revista impressa

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Bernardo Oliveira Escrito por:

Professor de filosofia da Faculdade de Educação/UFRJ, crítico musical e pesquisador.

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