Me pediram para escrever um ensaio para essa tão ilustre edição #12 da revista Outros Críticos, mas não qualquer ensaio, um texto que verse sobre a “arte” e|na|pela|pra “periferia”, uma vez que não poderia ter sido escrito por outra jornalista. Desejo então falar do meu lugar próprio, meu lugar de fala sem subterfúgios ─ mesmo não estando em casa agora, mas em Ouro Preto – MG. “Suburbana mas cosmopolita”, me apresento; portanto, mesmo que não escreva da Travessa Vila Velha, 128, Santa Mônica – Camaragibe (onde se situa o meu quintal com cacimba), falarei justamente desse e outros locais mais famosos nas prisões e nos jornais da morte.
Mas em Camaragibe tem Fundação e Conselho Municipal de Cultura, e, antes deles, tem (ou tinha) o já falecido e grande mestre Cacique Luna; a Escola de Samba Couro de Gato e o Boi Rubro Negro de Dona Dora; o multiartista e ativista político Ângelo Fábio; o Canto das Memórias Mestre Zé Negão (e a Sambada da Laia), assim como o Coco de Catucá; os cineastas Carlos Kamara e Olímpio Costa (premiado em Gramado como melhor som pela animação O ex-mágico); os artistas visuais Joana Liberal e Leo Arem, sem falar dos tambores e alfaias da Nação Zumbi, confeccionados pelo mestre, artesão e luthier Maureliano Ribeiro, para citar alguns nomes de lembrança imediata. Muitos destes ─ a exemplo de mim mesma nesta Outros Críticos ─ têm escoado a sua produção artística sobretudo em cidades como Recife e Olinda, de maneira independente ou ainda com o patrocínio do Estado. Eu já estava aqui nas Minas Gerais, participando de uma residência artística contemplada pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), quando soube que Camaragibe é a irmã caçula que recém-aderiu o Sistema Nacional de Cultura (SNC), do Governo Federal, e portanto poderá começar o incentivo federal para promoção e manutenção de cultura na nossa cidade.
O funk não é modismo, é uma necessidade
É pra calar os gemidos que existem nessa cidade
Pertinho da Prefeitura de Camaragibe, numa boate que toca brega, um Mané Galinha foi assassinado repentinamente, e há quem diga que “por motivos de inveja”. “Homem”, “mulher” e “jovem assassinado” estão presentes na maioria das manchetes (virtuais ou não) acerca da minha cidade. Na mesma casa de shows, semanas depois, se apresentou o MC Leozinho do Recife, que mandou ao vivo no Facebook um salve pra Pituca, preso há alguns meses no Complexo Prisional do Curado: “Liberdade!”
Bateu a saudade dos irmãos no sofrimento
Ai como eu queria visitar você lá dentro
mande uma visita, dá um alô, trocar uns papo e
lembrar com’era bom os tempos do passado…
Pra que os irmãos sobreviva no sofrimento
Uma visita pra quem não sabe é demais lá dentro
Só quem tá lá dentro é que sabe como é!
Lá a gente vê as amizades, que é e quem não é!
Pituca (19 anos) mora no meu bairro, e da mesma forma que eu, não foge de uma expectativa social de que lhe ver “preso, pobre ou morto já é cultural” (Racionais MCs). Simpático que é, sagaz também, o jovem poderia ser o que ele quisesse na vida. Mas a escola não o satisfez, aqueles ideais bíblicos da família desandaram, e deu no que não deu. Para quem não tem a oportunidade de escoar a criatividade e capacidade intelectual, “o dom que Deus lhe concedeu” enfim, numa profissão reconhecida pela Lei – ou mesmo numa igreja evangélica que agora infesta o Brasil – haverá sempre o crime para acolher esses indivíduos relegados bem dotados: o roubo, o tráfico, a Guerra das Torcidas Organizadas e, por conseguinte, a prisão ou a morte, não sei em qual ordem de terror.
Nos arredores da maior penitenciária do Brasil, em Pernambuco, a comunidade recifense do Totó sofre com a presença do Complexo Prisional do Curado ─ que abriga mais de 7 mil presos ─ tendo capacidade para no máximo 1,8 mil. De acordo com uma reportagem publicada na BBC Brasil, o Curado coleciona denúncias de violação extrema de direitos humanos e, segundo especialistas, põe em risco a vida de cerca de 100 mil pessoas que vivem nas imediações. Há relatos de que moradores dos bairros nas imediações foram mortos por disparos feitos de dentro do Curado; bombas lançadas no presídio também destruíram 30 casas a 40 metros de distância, deixando feridos. Dentro dos pátios dessa favela-presídio existem setores conhecidos como “Minha cela, minha vida” ─ nome inspirado no programa federal Minha Casa, Minha Vida ─, espécie de “área VIP” destinada aos detentos próximos do comando do narcotráfico local e que, por isso, conseguem pagar pelo “aluguel”.
“O que é para ressocializar não permite a ressocialização” – Carbonel
“O que é para ressocializar não permite a ressocialização”, aponta o artista e morador do Totó José Cleiton Carbonel. “Além do que, virou para alguns poucos presos Hotel de 5 Estrelas, onde o cara que vai preso tem lá a sua suíte, tem televisão, tem tudo; e mais: tem o telefone pra pessoa poder ligar pra onde quiser. Enquanto a comunidade não consegue mais. Se você for pro Totó hoje em dia, provavelmente vai ter dificuldade para fazer uma ligação, pois seu celular fica fora de área direto. Por quê? Colocaram uma antena. E ao invés de estar para dentro, e para os presidiários, os infratores, está pra fora. É a comunidade que se prejudica no final das contas. E a gente sabe que isso vem do Governo, né? A Defesa Social falha demais. E a comunidade quer ter sua voz de denúncia através dessa comunicação, dos grafites, a gente vai fazer o empoderamento e fazer valer o direito da gente. E o direito da gente é: Fora presídio!”, explica.
Carbonel defende o “momento de fortalecimento da comunicação e da arte popular na comunidade do Totó” e diante disso, uma das principais pautas é o que ele chama de “uma desconstrução do presídio.” Nesse sentido, o Centro Cultural da Juventude (CCJ), do qual Carbonel faz parte têm realizado diversos projetos audiovisuais, conta o comunicador: “a gente tem dois filmes, um é falando do Totó e outro é Fora Presídio, através do projeto ‘Ficcionalizar para Existir’; a gente tem outro filme do ‘Bolão Paz e Amor’, que é um artista da comunidade, porque ao redor do presídio tem muito escrito ‘paz, paz, paz’; e o cineclube que a gente tá lançando aí nesse mês de setembro que é onde a gente vai usar o muro do presídio para exibir os curtas da gente.”
Na mesma Zona Oeste do Recife, uma vez por mês, o refeitório da Colônia Penal Feminina do Bom Pastor, no bairro recifense de Engenho do Meio, serve de sala de projeção de cinema para as detentas vivenciarem o Cineclube Alumia. Acompanhei a sessão do mês de julho, realizada em parceria com o Fincar – Festival Internacional de Cinema de Realizadoras, no qual foram exibidos os curtas-metragens Kbela, de Yasmin Thayná, Do portão pra fora, de Letícia Bina e Quem matou Eloá?, de Lívia Perez. Antes de começar os filmes, quando me vi, já estava lá, no pátio da penitenciária, fumando um cigarro (pagando de doida) e trocando ideias com as detentas.
Uma delas pensou que eu era mais uma “novata”, ao me ver conversando livremente com as outras mulheres presas. Respondi a moça que era de se esperar que me confundissem, afinal, também sou preta-pobre-periférica (como a maioria delas, e com orgulho), mas fui interrompida por uma terceira voz: “Você não é negra”, contestou a outra presidiária, “é da minha cor”. E aproximou nossos braços, como que comparando, e ainda disse: “AQUELA é negra, apontou; e AQUELA, cabocla; mas a gente não”. Não vou detalhar, mas as mulheres insistiam que não éramos negras, por não sermos pretas pretinhas de cor. Tranquilamente, lhes disse que meu avô é negro, por exemplo, e algo se iluminou entre nós. Naquele dia, acabei compartilhando aquela “lombra do carai” – diziam, assim que se surpreendiam com o filme Kbela, sobre a relação da mulher com a sua afrodescendência – com essas detentas cis e detentos trans, que se viam refletidXs no espelho da telona mas não se reconheciam de imediato; porque é mesmo difícil nos conhecermos quando tudo é negação ao redor.
Igor Travassos, cineasta negro e produtor do Cineclube Alumia, afirma que o recorte do cineclube na penitenciária do Bom Pastor é trazer filmes majoritariamente pernambucanos “porque algumas apenadas não são letradas, logo, é necessário que sejam filmes falados em português originalmente ou dublados.” Isso reflete na identificação das espectadoras com as produções: “Por sempre buscarmos um diálogo com o cinema pernambucano, as detentas sempre se identificam com os cenários e se surpreendem em saber que aqui se faz cinema e, muitas vezes perto de suas periferias e realidades”. Em maio foram exibidos os curtas-metragens Recife, Cidade Roubada, do Movimento#OcupeEstelita; Robeyoncé, do filme coletivo Primeiro de Maio; e Vou contar para os meus filhos, de Tuca Siqueira. Na ocasião, conta o produtor, “uma das personagens do filme de Tuca, que foi presa política na década de 70 na Bom Pastor, esteve na sessão. Isso foi incrível porque elas puderam ver o quanto que o cinema pode se aproximar delas, além de que o debate seguiu uma linha sobre o sistema carcerário e o reflexo dele na ‘reeducação’ delas.”
Educação e reeducação: a primeira está mais-que-comprometida pela PEC 241, já que barra os investimentos previstos no Plano Nacional de Educação para ampliação da rede num país onde 3 milhões não estudam; já a segunda, só se for a REEDUCAÇÃO PARA O CRIME. Por exemplo, o Minha Cela, Minha vida do Complexo do Curado é uma das estratégias que o crime organizado colocou para dentro dos presídios. “Você conhece um ‘chaveiro’ que te indica à direção (do presídio) para ser transferido, e aí você negocia o aluguel com ele”, diz relato descrito pelo pesquisador da ONG Justiça Global, Guilherme Pontes, que acompanhou a visita dos juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 8 de junho deste ano.
Ao site Brasil de Fato, para explicar o termo “Faculdade do Crime”, o rapper e ex-presidiário Dexter cita o exemplo das pessoas que estão no cárcere por terem cometido pequenos delitos – por roubar um botijão de gás, por exemplo – e que passam a conviver com detentos “formados no crime”. “Então você acha que ele vai sair como de lá? Ele vai sair formado também.” Autor dos discos Provérbios 13 (com o grupo 509-E) e Exilado sim, preso não (solo), Dexter também avalia que a crise no sistema carcerário vai além do crime organizado, que segundo ele, reduziu o número de morte nos presídios; e vai na raiz do problema: “eu acho que é necessidade do Estado de provar a sua existência. Eu acredito na educação. Começa por aí. É a base. Tem uma música minha que eu falo que, enquanto uma escola é construída num determinado lugar, já se tem dez prisões a mais para inaugurar.”
Publicada originalmente na ed. 12 da revista Outros Críticos.
Foto de capa: Karol Pacheco por Fernando Barbosa e Silva.
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