Se olhas uma imagem tempo suficiente, ela começa a emitir sons

Saudações multicolores!

Confesso, amigos: meio sem saber sobre o que escrever para esta (talvez) última contribuição para Outros Críticos, topo por acaso com uma edição recente da ARTFORUM trazendo, entre seus textos, uma matéria do artista Joseph Grigely sobre “Soundscaping” (Soundscape). Como devem lembrar, “Paisagem Sonora” foi também o tema da 3ª Edição de Outros Críticos (em 2014).

O fato não apenas me surpreendeu por sua oportunidade, coisa que Grigely definiria como “serendipity” (acaso feliz), como também me fez pensar na recorrência deste tema sob a figura – sonora- do eco! Como lidar com a inevitável diferença no tratamento do tema Paisagem Sonora: não só entre OC e ARTFORUM, mas também entre a percepção que dele tive em 2014 e a que dele posso ter agora? Antes de ler a matéria, decidi que, independentemente do teor do texto de Grigely, eu escreveria sobre ele de qualquer forma, como uma homenagem às ressonâncias que, por acaso, nos trazem de volta temas estimados.

A citada edição de Outros Críticos nos chamou a atenção para a dimensão sonora, se não musical, da vida mesma! Mais recentemente, o filme “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, nos fez lembrar o quanto isto pode se traduzir em termos de ruído. Pensei topar com considerações semelhantes no texto de Grigely. Fui, contudo, felizmente surpreendido pela forma como ele trouxe a discussão para o território estrito das artes visuais, ao lembrar, por exemplo, a observação de Roger Brown, de que “se olhas uma imagem tempo suficiente, ela começa a emitir sons[1]”!

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Thomas Gainsborough. Conversation in a Park (cerca de 1740). Louvre.

Descrevendo o gênero pictórico da conversação, bastante frequente no século XVIII inglês e holandês em artistas como Hogarth, Gainsborough e Watteau, Grigely nos chama a atenção para o poder de evocação sonora das imagens pictóricas. Realmente, estamos mais acostumados a testemunhos de tal poder evocativo no que diz respeito a memórias (visuais), ou seja, a imagens mais mentais que visuais – e frequentemente sob a mediação implacável da linguagem verbal.

Somos, realmente, frequentemente instados a praticar um exercício de empatia, simulando, por exemplo, experiências próximas à experiência auditiva dos cegos; raramente, porém, somos lembrados da potência sinestésica das imagens vistas, no que diz respeito à sua dimensão sonora. Partindo do princípio de que o processamento das imagens se dá em nós, mentalmente, com base em nosso aparato perceptivo e sensório, podemos levar adiante essa atenção ao “som das imagens” e concluir que ele opera não de forma metafórica, mas fisiologicamente objetiva, caso toda percepção se dê, realmente, na mente.

Para além das “virtudes do silêncio”, tais considerações nos chamam atenção para os sons despercebidos não só no registro sonoro estrito, mas também no registro visual e no evocado por este.

A ciência neural contemporânea, graças a específicos desenvolvimentos tecnológicos, tem demonstrado que estímulos de determinado sentido podem desencadear simultaneamente a percepção real de outros estímulos, por ação inclusive da memória, que é sempre uma memória sensorial e associativa. Isto pode resultar num estado de coisas um tanto problemático para nós, artistas: estamos acostumados a tratar as correspondências entre os sentidos de forma, justamente, metafórica, entendida como poética. O silêncio fala, mas, para a arte que trata disto tradicionalmente, “fala” entre aspas – e de forma distinta da fala comum; ou do silêncio comum.

Cores evocam cheiros; paladares evocam gritos, mas tudo como num quadro surrealista no qual tal convergência sensória é colocada como alternativa poética para uma experiência mundana mais “banal”.

Diante dessa nova paisagem sonora mais “científica” – e sinestésica – a qual somos convidados a prestar mais atenção, surge o desafio de tratar a riqueza da convergência sensória no que esta tem de mais fisiologicamente assegurado, objetivo e “ordinário”.

Iniciativas artísticas recentes parecem lidar com a questão da sinestesia desta forma não tão “poética”. A matéria da ARTFORUM cita, por exemplo, a instalação de Phillipe Parreno, Speech Bubles (Balões de Fala), de 2015 (abaixo), que traz uma materialidade irônica ao universo verbal de nossos enunciados. Outros trabalhos mais “sérios” questionam, justamente, este lugar do som como lugar da voz, como um lugar de enunciação, como lugar de poder, talvez “batendo numa tecla” já de há muito comentada.

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Phillipe Parreno. Speech Bubbles. Instalação. 2015.

A propósito desta questão das “interpretações atreladas aos sentidos ou por estes induzida”, a pesquisa que realizei para trazer o quadro “Conversation”, de Gainsborough, mostrou uma série de inúmeras intervenções criativas sobre este, a literalmente “por palavras” na boca dos personagens da pintura, principalmente graças ao recurso gráfico dos “balõezinhos” de HQ. Pensei inicialmente em reproduzir tais intervenções aqui. Pensando melhor, contudo, e sendo mais coerente com o já exposto, não há necessidade de enfatizar uma dimensão sonora (virtualmente real) que a imagem já possui.

Retomando Grigely, não apenas “virtualmente toda imagem no mundo possui som a ela atrelado”. Este som, também e muito importantemente, significa. A “fala” dos personagens no quadro de Gainsborough, assim, será diferente para cada ouvido, sendo vital a ressalva de que um enunciado sonoro real também será distinto para cada ouvinte. Mesmo o sistema de som de um aeroporto, por exemplo, pode, para alguns, ter uma serventia meramente prática. Num caso conhecido, contudo (o do Rio de Janeiro), o sistema de som de um aeroporto pode culminar numa canção!

A título de balanço dessas considerações, assim, ouso sugerir que é preciso dar ouvidos aos sons do mundo; aos sons das imagens do mundo e aos sons que cada ser humano no mundo ouve, pensa, cheira, apalpa, prova, pensa e fala.

Sem aspas; sem hierarquia.

Inté!

[1] “If you look at images long enough, they start making sounds.”

Joseph Grigely é artista e, também, professor no “Department of Visual and Critical Studies at the School of The Art Institute of Chicago”.

A matéria citada neste texto está na edição de novembro de 2016 da ARTFORUM, das páginas 250 a 262.

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Jeims Duarte Escrito por:

Tem sua obra como artista plástico centrada no Desenho, numa ênfase constante sobre duas temáticas vistas como complementares: o corpo e a cidade. O retrato humano de tradição expressionista e uma pintura de paisagem focada na obsolescência urbana confluem, para o artista, numa "Poética da Construção de Ruínas", a problematizar o entendimento de um "realismo contemporâneo", objeto de tese em andamento no Doutorado em Design da UFPE.

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