No lugar de fazer uma mera adaptação do cinema para a literatura, os cineastas Marcelo Gomes e Karim Aïnouz criaram uma nova obra ao transportar para o papel o conteúdo do filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. O livro homônimo é um objeto dotado de linguagem própria, que combina fotografias (e “frames”), palavras e um projeto gráfico editorial bastante original para transmitir as ideias, sensações e emoções sobre as relações entre afeto, distância e paisagens já expressas no longa-metragem.
Ninguém precisa ter visto o filme para absorver plenamente o conteúdo do livro. É até melhor não, para que a surpresa das reviravoltas do roteiro sejam mantidas. Folhear as páginas é uma experiência sinestésica e, pelo menos do ponto de vista narrativo, cinematográfica.
O projeto gráfico (assinado pelo escultor Artur Lescher) chega a experimentar recursos que sugerem efeitos de montagem e trilha sonora, ao mesclar folhas com tamanhos, cores e tipos de papel diferentes. As letras das músicas “Morango do Nordeste” (Walter de Afogados e Fernando Alves), “Sonhos” (Peninha) e “O Último Desejo” (Noel Rosa) são reproduzidas, por exemplo, em pequenas páginas metálicas que intercalam o livro transversalmente.
A variação na forma de apresentação das informações visuais e textuais (com experimentos de poesia visual) também indica um ritmo ou uma sugestão de montagem cinematográfica.
Trata-se de um objeto de arte que pode ser apreciado inclusive fechado. Como cada capítulo tem diferentes cores e formas de preenchimento espacial, a observação lateral das páginas também revela um trabalho de composição visual, enquanto a capa dura simula o caderno de anotações do personagem-narrador.
A ausência de imagens em movimento é compensada pela maneira como a fotografia é trabalhada com sequências, sobreposições (fusões) e texturas de vídeo ou grãos de película. A natureza do “frame” é assumida como recurso de fluidez visual.
Na ficha técnica, há a informação de que o livro foi inspirado no clássico Os Sertões, de Euclides da Cunha. As duas obras têm em comum a paisagem do semiárido, a busca por um significado para aquele lugar e a tentativa de compreensão dos seres que ali habitam ou transitam. O Sertão, em ambas, não é apenas uma referência física e geográfica, mas também sentimental e interior. São relatos de um Sertão enquanto experiência.
Assim como o filme utilizava imagens documentais na construção de uma história de ficção em primeira pessoa, o livro é costurado por um texto escrito por um personagem fictício e situa-se nas fronteiras entre gêneros e formatos. Com fotos, desenhos e palavras que se equilibram sem hierarquias, pode ser interpretado como um romance, apesar de não seguir padronizações literárias de prosa ou poesia. O relato textual atravessa estilos diferentes, com trechos parecidos com relatório geológico, descrições de situações e pessoas, testemunho, carta de amor, elucubração, devaneio e mentira. São anotações, rascunhos e registros de pensamentos. Existe um trajeto, mas não é uma narração.
No contexto da literatura diretamente relacionada ao cinema pernambucano, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo aproxima-se do livro Olinda, de Mariana Lacerda (com desenhos de Clara Moreira e projeto gráfico de Joana Amador), que é inspirado no curta-metragem A Vida Noturna das Igrejas de Olinda, dirigido pela autora. Ambos priorizam a construção poética no processo de adaptação, enquanto outras publicações têm perfil mais didático, ensaístico, jornalístico, histórico ou documental.
15 LIVROS SOBRE O CINEMA PERNAMBUCANO
O Documentário em Pernambuco no Século XX, de Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra
Direções, de Alice Gouveia
A Aventura do Baile Perfumado: 20 Anos Depois, de Amanda Mansur e Paulo Cunha
Cinema Pernambucano: Uma História em Ciclos, de Alexandre Figueirôa
O Cinema Super 8 em Pernambuco, de Alexandre Figueirôa
Guel Arraes: Um Inventor no Audiovisual Brasileiro, de Alexandre Figueiroa e Yvana Fechine
A Imagem e Seus Labirintos, de Paulo Cunha
A Utopia Provinciana: Recife, Cinema, Melancolia, de Paulo Cunha
Relembrando o Cinema Pernambucano, com 59 crônicas de Jota Soares (organização de Paulo Cunha)
O Novo Ciclo do Cinema em Pernambuco: A Questão do Estilo, de Amanda Mansur
A Luneta do Tempo, de Júlio Moura (com fotos de Antônio Melcop)
Doméstica, o Livro, coletânea com 13 artigos sobre o filme de Gabriel Mascaro
Ary: Um Bandeirante do Cinema Brasileiro, de Nelson Sampaio Júnior
Olinda, de Mariana Lacerda
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz
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