
por AD Luna.
“Veja, isto é pouca/ Lenha no grande bate-boca/ E ainda escrevo uma carta capital/ Para os caros amigos desta banca de jornal// Veja, isto é pouca/Lenha no grande bate-boca/ E ainda escrevo uma carta capital/ Para os caros amigos desta banca de jornal// A formiga carrega a folha/ Do estado de São Paulo ao Piauí/ Enquanto isso a cigarra quer ser vip/ Pra sair contigo na capa da ti-ti-ti/ Caras, quem pra matar”.
Os divertidos versos acima pertencem à música “Banca de jornal”, na qual Tom Zé divide os vocais com Criolo. Na guitarra, o criativo Kiko Dinucci, integrante do grupo Metá Metá. A canção, um samba irônico, é uma das melhores de Vira Lata na Via Láctea, do novo disco do senhor de 78 anos, que não dá sinais de querer dar espaço para a decrepitude artística.
O álbum é praticamente uma crônica dos nossos tempos. Na música de abertura, “Geração Y”, palavras como iPad, iPod, laptop e smartphone vão surgindo até que o ouvinte se depara com uma lamentosa visão do futuro: “Oh, e os nossos ideais, ai, quem diria/ No mesmo camburão da burguesia/ Uma renca de parentes atender/ Nos ritos e delitos do poder”. Nessa parte, o instrumental reforça o tom melancólico e desesperançoso da previsão.
A Trupe Chá de Boldo, de São Paulo, acompanha Tom Zé em “Quantas anda você”, uma espécie de afrobeat tropical. A citada “Banca de jornal” é a terceira – que, além do inusitado da letra, possui espírito semelhante ao de “Augusta, Angélica e Consolação”, presente no álbum Todos os olhos, de 1973.
“Pour elis” já se inicia com bela intervenção de Milton Nascimento e letra enigmática. “Esquerda, grana e direita” questiona a hombridade dessas duas visões políticas. Dá-se a entender que, quando há muito dinheiro envolvido, ambas acabam por se corromper. A submissão ao poder econômico e o consumo desenfreado, tão característico dos nossos tempos, também são criticadas em “Mamon”. “O antigo bezerro de ouro, de ouro/ É novamente adorado, dourado/ O homem só vende consumo, consumo/ Usado fica descartado/ Surrado, surrupiado/ Surrado, surrupiado”. A letra foi inspirada em um discurso do Papa Francisco, realizado no Vaticano, em maio de 2013. A voz de Tom Zé passeia em cima de uma programação eletrônica intrigante, que acaba por se transformar num quase frevo eletrônico, perto do final.
“Salva humanidade” é ijexá funkeado, costurado por linha de baixo poderosa. A Trupe Chá de Boldo também aqui aparece, assim como em “Irará irá lá”. Canção com pinta de baião, jeitão de baião, mas sem batida explícita do ritmo popularizado por Luiz Gonzaga. Aliás, esse é um dos grandes méritos do disco Vira Lata na Via Láctea e de outros álbuns de Tom Zé: os músicos que o acompanham possuem destreza e criatividade suficientes para se utilizar de estilos conhecidos, mas sem cair na mesmice, na previsibilidade.
Num mundo em que o conservadorismo reacionário vem se fortalecendo, incluindo no Brasil, os gestos de boa vontade e abertura do Papa Francisco ganham tons revolucionários. Ele aparece mais uma vez no novo de Tom Zé, na marchinha “Papa perdoa Tom Zé”, acompanhada pelo O Terno. O embate esquerda versus direita também aparece aqui. Assim como o “tribunal do Facebook”, a faixa, aliás, como “Irará irá lá”, foram lançadas originalmente no EP Tribunal do Feicibuque (2013).
“A Pequena suburbana”, com participação de Caetano Veloso, encerra esse que é um dos discos mais consistentes de Tom Zé, nos últimos anos. O êxito certamente se deve à constante abertura do jovem quase octagenário em se reinventar e de estabelecer laços com as novas gerações de músicos, sem perder sua própria essência.
Publicado originalmente na 6ª edição da revista Outros Críticos.
Um comentário