Uma maré, maré erê. Uma, filha, criança, erê. Menina, negra, mestiça. Filha de preta, amazonina.
As crianças das favelas. A maré das crianças. Imagens que circundam a minha cabeça. Na favela da Maré, o mar é de sangue e amar é de morte. A beleza pura da vida, da bala doce, e a tragédia da bala que canta, rasgando o som, tombando do céu, no coração, na testa, na espinha. Infesta, em festa.
Trança se inicia com esse canto dos erês, para saudar, fortalecer e ser uma flecha no agora, um canto para esse momento que não passa, de dor e massacre do povo negro, dos índios, das crianças, das mulheres, águas, plantas, dos animais. Numa aldeia, num terreiro, numa comunidade, as crianças se reúnem com as mulheres, Marielle Franco está presente. Todas somos crianças. De presente, essa presença. Esperança de vida.
O disco é um espaço, um pedaço de algo, um território mágico, um terreiro sonoro, onde baixam e habitam personagens e entidades, que trafegam nessa terra fragmentada, nesses vestígios de pangeia. Todos, seres fundadores, perdidos, etéreos e eternos. Como em um sonho de imagens diluídas, mas permanentes. Pangeia é território do real e do sonho. Lugar único, onde existia toda a profusão de seres, grudados pelas raízes uns nos outros. A vida é permanência, mesmo que se morra, a vida é um fio contínuo, que se renova, em novas formas, como fios de cabelos que crescem além. Cabelos, cabeças, conchas, facas, só emaranham: acúmulo, despejo, despacho. Não sou uma onça, mas nos transformamos em várias. Marinheira pintou navegou fumou bebeu enfrentou ondas ares chuvas. Foi, voltou.
De rupturas, cruzamentos, peregrinações, um infinito entrelaçamento, grudando pelas pontas, aderindo pelas bordas, dormindo nas entranhas, enfim, tudo é uma trança nesse labirinto da vida.
Na periferia e na fronteira, ou no centro oco. Um rio morto dividindo duas zonas mortas. Ou um rio vivo unindo duas zonas vivas. A margem da margem da margem não tem margem. E o centro é o céu que mora no peito.
Evocações. Dos sertões, de Canudos. Das diásporas, dos refugiados. Das nações indígenas e negras. Das comunidades oprimidas. Das mulheres massacradas, das florestas incendiadas. Dos espíritos etéreos-navegantes, dos bruxos e bruxas. Incorporações. De Joana Dark. Da travessia de corpos mortos e vivos entre continentes rachados. Minha cabeça é uma rocha, é um pedaço de pedra, rodeada de mares, rodeada de guerras. Encarnadas.
Trança é a manifestação de um momento, um sopro, um feitiço, ele nasce que nem cabelo, em movimento, é um processo que nem terminou ainda, reflexo de uma urgência e um caminho sem-fim. Nele baixam energias, vozes. Comunhão, uma reza coletiva. Um corpo estado, atravessado. Dormir para morrer um pouco e acordar de novo. Travessia corte lento para o futuro, ave de ave. Saravá. Amor. Presenças. Cabeças. As nossas macumbas, magias, do dia a dia.
A gente tem uma raiz, uma história. O Brasil é um lugar, patrya-matrya, tem tradição e tem ancestralidade. E tem invenção, movimento. Mas tem a dor da diáspora e da escravidão, associadas ao extermínio e ao apartheid, de ontem, hoje e sempre, no Brasil, essa terra sagrada indígena! Na américa latina, essa terra sagrada indígena! Essa terra-mãe que abrigou frondosamente todos os filhos que nela chegaram, e nela floresceram, mas foi ela também que viu suas águas virarem sangue, lama, cemitério. Ainda estamos vivos, embora morrendo, estamos vivos, embora sempre se tenha morrido, sempre se resistiu e sempre se inventou. A poesia é a invenção da alma, na forma da resistência que se reforma em alegria, numa tensão explícita. A arte é daqueles que resistem. Dos viajantes. Dos criadores. Dos sambistas. Dos resistentes. Dos loucos. Dos morros. Dos sonhadores. Das florestas. Dos autistas. Somos uma banda, um bando. Uma guerrilha diária. Geopolítica fragmentada. Comer manjar pelo povo do oriente. Povos sem-terra, sem-teto, sem direitos.
Esse texto é um corpo, não é outro corpo, nem outra coisa. São mais de mil luzes, mais de mil ruas, mais de mil sonhos. Uma luta histórica pela terra. Essa luta que evoca o poder do povo, e a tragicomédia morta onde o que sobrevive é o maramoroso e a mágica. Na fogueira do ardor das lutas irresistíveis. Do fogo arcaico. Na fogueira da santa joana, das mulheres e homens que querem justiça, liberdade, amor, igualdade, cura e beleza.
De onde são as pessoas, afinal? Será que na morte a terra também é dividida?
Meu coração é fé e amor, na paz ou na luta, pelas deusas e deuses, nesse mar incerto, por um Brasil justo, a altura de sua beleza e sua bênção. Acima de nós há batalhas mais profundas que mal podemos imaginar. Mas há as reais, profundamente reais, coladas na pele e no osso, na terra que meu chão pisa e sente o seco e molhado. Os rios estão morrendo, tudo está morrendo, e deveríamos estar vivendo, inspirados pelas montanhas ou pelas águas que nunca morrem, a não ser que seja de morte matada. É a guerra da terra contra a máfia.
Infelizmente o Brasil se sustentou na desigualdade e na exploração dos corpos, na fome e no extermínio, na ignorância e desconexão total, no investimento de um mercado cultural afinado com o pior da estética capitalista, a serviço da opressão de todo o potencial de um povo e de um novo; um país mágico e ao mesmo tempo perverso. O extermínio negro e indígena é uma realidade latente, e o desmatamento de florestas, da cultura e do espírito, enfim, o assassinato constante da vida em todas suas formas, é latente e esmagador.
Mas antes que venham nos pegar, na febre, no delírio, na neblina, nos prender numa fotografia, já escutamos os rumores, das ondas, dos mares. Escuto através de seus ouvidos e também te empresto os meus. Escuto os segredos dos mundos, dos terreiros, no escuro e no claro. Juntos somos um barco navio jangada arca oca no mar, somos Dorival, bárbaras, amantes amadas, as plantas sagradas, a erva de deus, somos muitas conchas pra não catar, e tantas outras pra encontrar. Trança de afetos de ondas sintonizadas. Canto o que era sussurro e agora é água, para berrar o jato, disparos de poesias e bombas, memórias que trançamos para manter viva a chama do futuro onde quero a nação indígena e negra relançando o Brasil, e serão mulheres para reviverem o inconsciente coletivo.
Eu canto a vida, a matrya, a patrya, canto por Lilith, Pachamama, pelas Joanas, pela mata e pela bala que não mata, pela flauta dos ventos, pelo pássaro, pelo indígena, trabalhador, pela terra do samba, do morro que não morre, para que vença o santo guerreiro. Justiça, justiça, justiça. Viva a vida negra! Viva a vida indígena! Viva a vida total!
Seguimos equilibrando nossas forças, nossos ossos, nossa trança exposta, a joia. Costuramos nossa pangeia de afetos no cinema da caverna, há furos de luz. Trança é uma quadrilha de mulheres, vulvas vivas xapeu xoxota. Somos as deusas e as diabas. Na terra do sol somos. As bruxas da pesada. Somos mais que mil dragoas. Com mais de mil olhos. Mais de mil línguas. Sob o sol poente do oriente. Há mais que prédios, mais que alturas, mais que chapéus. Mais que duas, mais que mil, mais que bilhões.
A estrada por onde a trança se alonga é de terra. É encruzilhada. É tambor, sol, fogo e nascimento. Sou eu em você, no sonho, na maré, na margem, na realidade. Sou uma trança, um emaranhado, um cruzamento, um papel, um origami. Me desdobro, estou dentro e fora, me vejo e revejo, num espelho, num lago, um estado, uma vidraça quebrada, fissura, rachadura, a África. Assumpção, nação. Uma transa. Quente e fria! Entre corpos, entre estrelas, entre imagens, entre palavras, entre sons. A transa-américa. A Lilith! A mãe de todos, é a primeira mulher, é negra, é Yemanjá, e é Pachamama que é índia, que é a terra. Todas irmãs, ligam línguas. Redes, raízes, ramificações, cordões umbilicais interconectados. Folhas, facas, penas, plantas, dedos e raízes. Trançar feitiços, segredos ancestrais. Um plano de cinema vaginal. Uma tela de paredes-lábios. E sou homem também. Trans transa américa amazônica. As águas estão presentes. Jorge da Capadócia está presente. Erês estão presentes. Caboclos presentes. Marinheira presente. Pomba presente. Essa trança tá trançada num trançado ancestral. Trançados em barrigas. Tranças de cordões umbilicais. Rios de leite. Caminhos férteis. Na barriga planeta templo-tempo eterno, todas somos mães. Minhas avós, Lúcia e Dina presentes, minha mãe presente, minha irmã presente. Minha filha. Meu pai. Paula. Maira. Uma. Anecy. Aruac. Glauber. Lucia. Tunga. Nana. Ericson. Dina. Pedro. Negro Leo. Lindomar. Daniel. Emiliano. Minhas tataravós. Minha sogra Lindomar presente. Minhas amigas.
Estou perdida, mas em movimento. Desconexa, histérica. Mulher, aprisionada. Desde o início dos tempos. Arrebento as correntes do sonho. No sonho, eu saio de mim, me vejo. Um sonho de terror. Uma surpresa, investigação misteriosa de nós mesmos. A imagem não é apenas o que se vê. O plano é além, é o que nele não tá contido. São como as imagens ocultas que rondam na periferia da consciência e do real, que é a inconsciência e o sonho e isso tudo que nos margeia nos revela mais, além de nós. Estou perdida entre a ação e a inércia. Minhas armas não são suficientes. Onde estão minhas armas?
O que seria a memória? Movimento contínuo que acompanha os dias. É a investigação daquilo que nos construiu. A memória, a tradição, o rito, a invenção, a resistência, a cultura, a natureza, são elementos do mesmo fluxo, de constituição do que somos. Todos caminhamos para um mesmo lugar. Quanto riso, Ó quanta tristeza, mais de mil palhaços no salão, Patrya tu não percebes que meu amor é maior que a tradição?
Minha vida se confunde com a sua e que se confunde com o mundo que se confunde com o nada. Em breve uma projeção espetacular no fundo do olho que olha. Sou um coração batendo no mundo. Febre é delírio, é paixão, a fantasia da alma. Danço. Hoje, escuto. O corpo é um ouvido à noite, o vento é um segredo, a mão é uma boca e o céu é um inferno.
Foto: Ana Alexandrino
Publicado originalmente na ed.13 da revista Outros Críticos.
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