por Bernardo Oliveira e Fred Coelho.
Por iniciativa de Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, a Missão de Pesquisas Folclóricas percorreu o Norte e o Nordeste do Brasil durante o ano de 1938. Em busca de registros de manifestações culturais, particularmente de dança e música, trouxeram na bagagem gravações em áudio e imagens dos estados de Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Pará e Minas Gerais. Entre os registros mais interessantes, é possível citar o caso dos “carregadores de piano” do Recife, grupos com cerca de oito homens que trabalhavam no porto e carregavam os pianos que chegavam da Europa para as casas particulares. No caminho, cantavam para ritmar o passo, entoando temas motivacionais com títulos como “Vamos nessa meus amigos”, “O coati tá no pau” e “Meu barco é veleiro”. O fenômeno é análogo aos vissungos e aos work songs norte-americanos, mas destaca-se pelo modo singular com que os cantores jogam com dinâmicas de pergunta-e-resposta, semelhantes ao coco de roda.
Música-acontecimento devido ao registro flagrante, mas também música-empoeirada, coberta por uma fina camada de ambiências e ruídos, captada por um antigo gravador MR6 DE, microfones e amplificadores, em sua maioria produzidos pela empresa norte-americana Presto Recording Corporation. Muitas perguntas surgem então: essa música pode ser considerada independentemente do fenômeno e do registro, “gênero” ou “estilo”? Desde o momento em que foi registrada, ela não permanece atrelada, não só ao momento, como também às condições técnicas e experienciais do seu registro — incluindo o contexto e a presença do gravador e dos técnicos? A prática do registro participa da afirmação do fenômeno no tempo presente, uma vez que permite, com suas lentes, que ele chegue até nós? Chiados e desequilíbrios passam a fazer parte do fenômeno ou se resumem a um efeito colateral inconveniente? Capta o acontecimento de forma absoluta ou possibilita seus desdobramentos virtuais a cada nova audição? É possível ainda detectar relações de causalidade entre o fonograma impresso e o próprio acontecimento?
A canção no Brasil desempenha um papel central na produção de subjetividades e nos modos de narrar a história. A música brasileira é concebida e desenvolvida à luz da canção e seus desdobramentos práticos — a festa, o carnaval, o ato social, as mensagens subliminares, a conversa da malandragem, a estratificação social, o amor, a flor e o espinho. A história da canção oferece um eixo para nossas narrativas de origem e para nossas narrativas trágicas. Ela manifesta uma certa concepção de evolução (“a linha evolutiva”), demarca os períodos de ouro e de crise (a Era do Rádio, a Era da Bossa, a Era dos Festivais), e, finalmente, compartilhando seu espaço com outras modalidades sonoras, a canção se torna indício de uma suposta decadência, anunciada através de diagnósticos apocalípticos (“o fim da canção”, “o fim da cultura”). Decerto, não se trata de decadência, muito menos de involução, mas talvez de uma indisposição metodológica, um modo específico de se perceber os fenômenos sócio-sonoros.
“Imaginem que a história da música brasileira não começou com a beleza sublime da canção popular. Que, virando tudo de cabeça pra baixo, não foram suas vozes que viraram musas.”
Imaginem que a história da música brasileira não começou com a beleza sublime da canção popular. Que, virando tudo de cabeça pra baixo, não foram suas vozes que viraram musas. Imaginem que essa história começa quando alguém grava essa canção para que ela possa ser reproduzida para todos. Uma história que privilegia a técnica da gravação, o fenômeno maquínico da música — a captação do som — tornando-se uma espécie de centro gravitacional das narrativas sobre a canção e sobre a música brasileira em geral. Nessa contra factualidade, temos momentos importantes, quiçá origens fundadoras. Podemos escolher, como marco zero dessa história da máquina na música, a chegada ao Brasil de Frederico Figner, um tcheco que, após um período em Nova Iorque, desembarca em Belém do Pará no longínquo ano de 1891. Figner traz ao país a novidade inventada por Thomas Edison: um aparelho que já estava bem próximo do que viria a ser o fonógrafo. Rodou boa parte do país, principalmente no Norte e no Nordeste, registrando as vozes das pessoas e as fazendo ouvi-las em reprodução mecânica pela primeira vez. Ao chegar ao Rio de Janeiro, capital da recém-fundada República, ansiosa de tecnologia e modernidade, ele abre sua famosa Casa Edison, na rua Uruguaiana. Logo depois, com o advento das “bolachas” (discos de cera), Figner mudou sua tecnologia e ampliou os planos. Tornou-se o responsável por importar novas máquinas, equipamentos de gravação e reprodução, abrindo um estúdio e uma nova loja na rua do Ouvidor. A partir de então, em 1902, passou a lançar os primeiros discos brasileiros (e o selo Odeon). Baiano, cantor popular do período, gravou “Isto é bom”, e a canção popular deu o seu primeiro passo para dominar todas as narrativas sobre a música brasileira.
O conjunto da composição cancional contemporânea impõe ao crítico a adoção de outras perspectivas de abordagem e compreensão do que aquelas disponíveis até então. Os modelos musicais com os quais se trabalha a história da música no Brasil excluem uma pesquisa de modos técnicos, pesquisa de timbres (fontes sonoras) e de alturas (frequências), para se concentrar na poesia, na tríade melodia-harmonia-ritmo e, eventualmente, na questão da performance. Diante da multiplicação de tendências que se desdobram para além das fronteiras nacionais, percebe-se imediatamente a impossibilidade de uma sistematização mais rígida, orientada por critérios habituais, como os que balizam a pesquisa musical no Brasil: o formalismo (música como expressão da forma), o essencialismo (música como expressão de uma essência), a história antiquária (o folclore), a história monumental (a bossa nova, a jovem guarda, o tropicalismo), a manutenção da “identidade cultural” (e dos valores identitários), isto é, a relação da cultura com a dimensão do popular e do nacional.
Sobre a canção, pode-se detectar duas abordagens da canção: uma culturalista (o Wisnik de O Som e o Sentido); a outra formal ou verbivoco-literária (Tatit, Zumthor, “performance”, “vocalidade” dicção). Em ambos os casos o que se exprime no ato da performance é a dicção do compositor, produção intermediária entre a essência formal (a forma cancional) e a expressão efetiva da performance. Isto é, a expressão da performance é efeito de uma causa, a forma da canção, a forma da interpretação. A canção brasileira está presa a uma causalidade formalista, que encontra sua possibilidade de existência como efeito de uma essência.
“A inclusão do ruído, das longas durações, a valorização da ambiência, inscrevem outras dinâmicas expressivas no corpo cancional brasileiro.”
As categorias elaboradas por Luiz Tatit não se tornaram obsoletas, mas sua eficácia na análise cancional pode vir a reivindicar a introdução de outros elementos. A canção contemporânea não se resume a uma resultante inscrita em um sistema de coordenadas bidimensional, formado única e exclusivamente sobre a tessitura (altura) e o andamento (duração). Hoje, talvez seja preciso encarar que a canção se faz também na performance, na instrumentação, nos modos de apresentação e gravação, valorizando também a intensidade (volume) e o timbre (fonte sonora), não como adereços, mas como elementos constitutivos. Isso porque, adequadas sobre a canção como hábito e epicentro da cultura nacional, as noções de forma e conteúdo, como formas apriorísticas da análise musical, se inscreveram imediatamente no corpus cancional brasileiro, permitindo isolar a canção da performance. Porém, para alguns compositores do século XX e XXI, a essência formal não pode ser exposta sem que se traga a experiência e a performance para o epicentro constituinte da canção: é através da aparência e da transparência que boa parte desses autores irão se exprimir. Se faz necessário pensar a canção em conformidade com a escolha da instrumentação e a performance, buscando não só identificar as escolhas timbrísticas na interpretação vocal, como também nas opções instrumentais, nos arranjos e no modo da apresentação. A inclusão do ruído, das longas durações, a valorização da ambiência, inscrevem outras dinâmicas expressivas no corpo cancional brasileiro. A canção se torna um objeto integrado não mais a um “acompanhamento” ou a uma “linha evolutiva”, mas adapta-se a múltiplas ecologias sonoras.
Neste contexto, qual seria o estatuto das pesquisas conectadas à manipulação de alturas e timbres, de invenções técnicas e ambiências? Será que o único elemento na música brasileira é a canção consonante, as dissonâncias administráveis, os instrumentais como acompanhamento e a gravação limitada ao registro do momento? Ou a percepção de certas práticas e procedimentos afirmam uma história apócrifa: a história do som na música brasileira? É por este caminho que pretendemos ventilar a hipótese de uma determinada história da música no Brasil, uma história experimental sobre uma forma experimental de se conceber e produzir música, ressaltando as pesquisas, o jogo de erro-e-acerto e os modos de criar sons presentes em toda música. História, portanto, elaborada a partir de práticas e questões acerca do som e seus desdobramentos técnicos, tecnológicos e inventivos.
“Se a nossa história fosse também a do Som como referência, e não somente a da voz e da canção, saberíamos tudo sobre Fred Figner.”
Se a nossa história fosse também a do Som como referência, e não somente a da voz e da canção, saberíamos tudo sobre Fred Figner. Saberíamos provavelmente o nome do técnico da gravação da música interpretada por Baiano. Teríamos certamente um relato heroico desse momento de precariedade e superação na primeira gravação brasileira. Um relato com o mesmo heroísmo contido nas festas de Copacabana e Ipanema, o mito de fundação da Bossa Nova; ou na história sobre o dia em que João Gilberto bateu na porta dos Novos Baianos em um apartamento na rua Conde de Irajá. Sabemos, porém, que isso não ocorre. Ninguém sabe o nome do nossos primeiros técnicos, raramente sabemos seus nomes ao longo do tempo. Quem operava as máquinas, não estava ao lado de quem usufruía do seu funcionamento — isto é, os cantores e instrumentistas que eram gravados.
Jacob do Bandolim, por exemplo, era fascinado pela tecnologia e se inteirava constantemente do universo de equipamentos e efeitos, chegando a utilizar-se de fotografias e microfilmes para facilitar a transcrição e armazenamento de partituras. Em 1959, durante as gravações de uma série de faixas para a Rádio MEC (relançado em1996 com o título Choros, valsas, tangos e polcas), Jacob toca um instrumento que ele próprio inventou, o Vibraplex, espécie de guitarra elétrica que explorava as reverberações de um violão tenor. Com isso, evidenciava uma pesquisa por outras formas de tocar, de compor e de “timbrar” instrumentos do choro.
Outros tópicos dessa história do som seriam constituídos por um estudo acerca das relações entre técnica, registro e invenção, tanto nas expedições organizadas por Mário de Andrade nos anos 30, como na caixa Música do Brasil, organizada na primeira década do século XXI por Hermano Vianna e Beto Vilares. Seria preciso também lançar luz sobre as escolas de música dos anos 60, coordenadas por grandes experimentadores — entre elas a UNB, com Claudio Santoro, Rogério e Régis Duprat, Damiano Cozzela e Décio Pignatari e a UFBA, com Hans-Joachim Koellreutter e Ernst Widmer; resgatar as experiências com frequências e silêncio de Walter Smetak; prestar atenção ao “Hertzé” e demais instrumentos inventados por Tom Zé; estudar a tamba, o chocalho d’água e outros instrumentos inventados por Pedro Sorongo; João Gilberto como noise musician; não esquecer a voz e o violão de Nelson Cavaquinho, que ainda aguardam um estudo aprofundado devido a sua extrema originalidade; reconhecer os achados timbrísticos do Grupo Fundo de Quintal e dos sambistas do Cacique de Ramos; não ignorar o modo peculiar com que o funk carioca faz uso dos equipamentos de produção, desde os sintetizadores e drum machines dos 80 aos MPCs e softwares da atualidade. Longa e variada, a lista de tópicos a serem levantados por uma história do som na música brasileira atravessa todo o século XX.
“O que está em jogo é justamente a possibilidade de outras bases sonoras ampliarem o vocabulário dessa música local e, principalmente, tornarem-se parte ativa de uma massa crítica sobre nossa história musical.”
Não se trata de negar em absoluto a canção popular, muito menos de criar uma espécie de divisão entre consumidores de música “brasileira” e “musica gringa”. O que está em jogo é justamente a possibilidade de outras bases sonoras ampliarem o vocabulário dessa música local e, principalmente, tornarem-se parte ativa de uma massa crítica sobre nossa história musical. Os resultados práticos, aliás, estão cada vez mais no prato do dia, como os trabalhos recentes de cantores e cantoras que, mesmo aliados ao viés pop da canção brasileira, incorporam o ruído e o grave, a dissonância e a máquina como elementos vitais e autorais em suas criações.
Se a história é o registro testemunhal do passado em suas variadas formas, métodos e expressões, evocamos aqui uma “transistória”, constituída por observações acerca do movimento e dos materiais invisíveis. Não os deuses, nem os mitos, nem as musas, nem as crenças e valores, mas as forças do silício, da termodinâmica e do eletromagnetismo, as forças do acetato, do som, do rádio, da imagem, do pixel. Nem uma fenomenologia (pois não operamos com “sujeitos” autônomos e monódicos), nem uma nova semiótica (pois o signo está inserido no devir do mundo, e não o oposto). Algo ainda mais problemático do que uma “história do tempo presente”. Uma “transistória” é uma história do transistor como meio de comunicar o incomunicável — não porque é inefável, mas porque é pura potência transdutiva e inocência aleatória. Uma transistória é uma história do vir-a-ser, das forças, das ondas, das energias, nos quais estamos inseridos, e das relações de poder e temporalidades que elas geram. Tempos multilineares, multidirecionais. O tempo das subjetividades, das escutas particulares, da abertura para a interpretação e para deixar-se afetar por algo além (e ao lado) da canção assobiável.
“O que se evoca, portanto, é uma ‘transistória’ da música no Brasil que não separe o ‘folclore’ de música urbana”
O que se evoca, portanto, é uma “transistória” da música no Brasil que não separe o “folclore” de música urbana, que descarte categorias pautadas na produção dos grandes consensos, que não minimize a expressão sonora como dado fundamental da apresentação, que evitaria desprezar formas de gravação, efeitos, experiências e demais possibilidades associadas ao som. Uma história que considere o problema da canção em paridade com o “acompanhamento” (o arranjo), com a pesquisa de timbre e altura, com as condições sonoras, com a criatividade dos técnicos. Em suma: liberar agenciamentos sufocados ou não explicitados, recompor as redes da música e do som no Brasil. Essa transistória não elegeria estratos exclusivos de invenção (o modernismo, a bossa, o tropicalismo), reconhecendo a invenção em todas as matérias sonoras desenvolvidas em âmbito nacional e entre as fronteiras reais e imaginárias. Quem sabe assim, em um futuro não muito distante, novas gerações considerem Figner e os pioneiros da gravação no Brasil tão importantes quantos as vozes eternas de nossos cantores.
Publicado originalmente na revista Outros Críticos #10 – versão da revista on-line | versão da revista impressa
Texto revisado e ampliado, publicado originalmente no blogue e catálogo do Festival Novas Frequências.
Imagem de capa do site: Gilvan Barreto
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