Enjaulado, Baile Perfumado, Amarelo Manga e Tatuagem são os únicos filmes pernambucanos cujas trilhas sonoras foram lançadas em CD. As músicas de todos os outros curtas e longas-metragens só foram escutadas por quem os viu (salvo exceções de lançamentos na internet). Existe, portanto, uma considerável produção musical de Pernambuco que se encontra inacessível e representa uma espécie de linha do tempo transversal e oculta em relação ao trabalho de bandas, instrumentistas e cantores como Nação Zumbi, Dominguinhos, Chambaril e Otto, entre outros.
Lançado pela gravadora Natasha Records com distribuição da BMG, o disco de Baile Perfumado contém faixas que já haviam sido lançadas por Mestre Ambrósio e Nação Zumbi (“Salustiano Song”, “Sangue de Bairro”, “Baile Catingoso” e “Benjaab”), mas a maior parte do CD é formada por músicas inéditas produzidas exclusivamente para a trilha sonora. É o caso de “Angicos”, cantada por Chico Science, e da canção homônima ao filme, cantada por Stela Campos com arranjo da Mundo Livre S/A.
O disco de Amarelo Manga (YB Music) inclui “Gafieira no Avenida”, uma das músicas mais lindas já cantadas por Jorge Du Peixe, que nunca foi gravada pela Nação Zumbi mas, posteriormente, foi regravada pela Eddie. Outras músicas do filme chegaram a ser reaproveitadas, como a faixa “Amarelo Manga”, incluída no CD Sem Gravidade, de Otto.
Com participações de músicos como Fred 04 e Júnior Areia, a trilha desse primeiro filme de Cláudio Assis é assinada por Jorge Du Peixe e Lúcio Maia, que também haviam feito as músicas de Texas Hotel, curta que deu origem ao longa. Pupillo e Jorge du Peixe foram os responsáveis ainda pelas trilhas (inéditas em CD) das duas obras seguintes do mesmo cineasta, respectivamente Baixio das Bestas e Febre do Rato (onde foi incluída “Passione”, cantada por Júnio Barrreto com participação de músicos da Mombojó).
A trilha de Enjaulado, curta de Kleber Mendonça Filho, é uma coletânea com músicos de sua época, um verdadeiro instantâneo daquele momento musical do Recife. O CD inclui, por exemplo, as primeiras músicas solo gravadas por figuras como Otto (“TV a Cabo”) e DJ Dolores, que recentemente lançou o disco Banda Sonora, formado por faixas produzidas para filmes como O Som ao Redor, Estradeiros e Amor, Plástico e Barulho. Otto também trabalhou como ator no curta Porcos Corpos, de Sérgio Oliveira, que tem três músicas do cantor elaboradas especialmente para o projeto.
“A questão geracional está bastante refletida nessa interação entre música e cinema pernambucano.”
A questão geracional está bastante refletida nessa interação entre música e cinema pernambucano. Enquanto Baile Perfumado reuniu bandas que participaram do Movimento Mangue e foram projetadas em festivais como o Abril Pro Rock; cineastas revelados em décadas seguintes, como Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, Daniel Aragão e Daniel Bandeira, convidaram músicos de sua geração para produzirem as trilhas de seus filmes, gravadas por nomes mais ligados ao contexto do festival No Ar Coquetel Molotov, como Iezu Kaeru, Claudio Nascimento, Carlos Montenegro e os irmãos Mateus e Tomaz Alves Souza, de bandas como Profiterolis, Chambaril e Embuás.
A trilha sonora de Amigos de Risco, longa-metragem de Daniel Bandeira que está prestes a ser relançado em versão retrabalhada, foi gravada pela banda Chambaril em parceria com Tomaz. Suas músicas formam um verdadeiro disco de música pop, que deve ser revelado em algum momento. Tomaz tornou-se um dos mais atuantes compositores do cinema pernambucano e trabalhou também em filmes como Véio, de Adelina Pontual, Cinema, Aspirinas e Urubus e Era uma Vez Eu, Verônica, ambos de Marcelo Gomes. Da Chambaril saiu a dupla Nascinegro, formada por Carlos Montenegro e Claudio Nascimento, também já bastante experientes em trilhas (Aeroporto, Deixem Diana em Paz, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo etc). Mateus Alves, que tocou nas bandas Chambaril, Profiterolis e Embuás, é outro nome em ascensão e tem composto principalmente para projetos dos cineastas Marcelo Pedroso (Em Trânsito e Brasil S/A) e Pedro Severien (A Loja de Répteis e Rodolfo Mesquita e as Monstruosas Máscaras de Alegria e Felicidade).
Músicos de Pernambuco colaboraram ainda com filmes de fora, como a Nação Zumbi em Besouro e o maestro Marlos Nobre em O Dragão da Maldade Contra O Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. Compositores de outros estados e países também participam do cinema pernambucano. Daniel Aragão trabalhou com o finlandês Jimi Tenor em Boa Sorte, Meu Amor e com o norte-americano Bernie Worrell (tecladista do Funkadelic) em Prometo um Dia Deixar Essa Cidade. Camilo Cavalcante convidou Dominguinhos e o polonês Zbigniew Preisner (A Liberdade É Azul) para a elaboração das músicas do premiado longa A História da Eternidade.
A Luneta do Tempo, filme dirigido por Alceu Valença, é um exemplo à parte, já que o cineasta é também o músico. Trata-se de um longa-metragem musical, com absolutamente todos os diálogos cantados ou pelo menos rimados, onde o trabalho de roteirista confunde-se com o de compositor. Todas as palavras mencionadas pelos personagens foram escritas pelo próprio cantor, que gravou as músicas com sua voz e as entregou ao elenco antes do início das filmagens.
Outro fenômeno recente foi estimulado pelo surgimento de festivais de cinema musical, como o Play The Movie e a Mostra de Cinema Silencioso. Nesses eventos, músicos desenvolvem e apresentam ao vivo novos acompanhamentos musicais para filmes clássicos. O último disco da banda instrumental Anjo Gabriel, por exemplo, foi inspirado pela interpretação sonora que seus integrantes criaram para Lucifer Rising, do cineasta Kenneth Anger.
A maior parte de todo esse conteúdo musical encontra-se eternizada nos próprios filmes. Para o grande público, contudo, o acesso a essas canções é limitado, o que as joga em uma história oculta da música popular pernambucana. Mesmo alguns dos discos que foram lançados estão fora de catálogo, esgotados, sem perspectivas concretas de relançamento. Os sites de compartilhamento de arquivos na internet e os acervos de amigos tornam-se, portanto, praticamente a única fonte de referência, mesmo que informal.
As músicas de todos esses filmes são tão diversificadas quanto às imagens que elas ilustram. Há gêneros musicais presentes, mas a maioria dos músicos desenvolve experiências com estilo próprio, sem seguir padrões, assim como fazem os cineastas que criam sua maneira pessoal de fazer cinema. Essa aliança entre linguagens é um assunto inesgotável que permite diversos caminhos de investigação.
Publicado originalmente na 4ª edição da revista Outros Críticos.
Foto: Cena de “Brasil S/A“, de Marcelo Pedroso.
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