
Geralmente, quando há uma crítica sobre a indústria cultural ou a cadeira produtiva da música, nunca o artista ou um grupo artístico são colocados em foco de um debate construtivo (ou mesmo destrutivo). Produtores, técnicos, editais, críticos, instituições privadas ou públicas e curadores são os principais alvos desse tipo de embate crítico realizado por produtores, consumidores, distribuidores e jornalistas da música em forma de textos, vídeos e bate-papos em mídias alternativas e estabelecidas.
É preciso perceber que o músico constitui uma das classes mais desunidas no sentido de não ter regulamentações firmes sobre a profissão, além de não conseguir agregar benefícios trabalhistas, como fazem instituições, por exemplo, como a OAB e os CRMs, que não são perfeitas, é claro, mas são mais bem-vindas do que a OMB ou o ECAD.
O músico é um ser egoico, mas não em sua essência ou gênese, essa ideia é naturalizada no senso comum. O conceito do gênio encontra-se enraizado na personalidade artística de forma brutal, desde o Romantismo, e intensificado pela indústria cultural que deu e continua a dar visibilidade, fama e glamour, principalmente, nos segmentos da música e do audiovisual, onde encontramos as grandes estrelas midiáticas e as celebridades cultuadas por todas as faixas etárias e, no contexto mais atualizado das mídias e dos produtos culturais, existem personalidades e perfis de artistas para todos os gostos e nichos.
Tendo uma consequente fragmentação da classe pela exacerbação do indivíduo, os profissionais da música não imprimem uma política coletiva, talvez, o termo mais correto seja o corporativista mesmo, pois é mais carregado de burocracia. Por ser avesso às normatizações e aos regulamentos, o profissional criativo não consegue deixar um legado de sustentabilidade para uma geração futura, só sendo possível isso quando o sucesso individual transborda pelas beiradas da cena, o que não alcança níveis estruturais de mudanças nem apresenta projetos com metas de ações para a melhoria das condições de trabalho.
“(…) o intuito maior é almejar uma sustentabilidade viável para todos.”
Mesmo quando a intenção de montar um grupo de artistas em torno de um conceito e com pretensões de distribuição mútua, são raros os músicos que voltaram atenção para a constituição de um aparato legal no sentido de garantir, por exemplo: um piso salarial, o pagamento garantido por realização de serviços; coisas básicas! E também existem outras coisas mais complicadas como a expansão da cadeia produtiva da cidade, do estado e da região Nordeste, criando a possibilidade de circulação de shows e do material produzido, o que resultará em sustentabilidade para o profissional; além de aliar a tudo isso todas as mídias possíveis, as estabelecidas e as alternativas. Enfim, são abismos e gargalos fundamentais que precisam ser enfrentados para superar problemas essenciais, pois o intuito maior é almejar uma sustentabilidade viável para todos! E que isso seja vivenciado na prática de trabalho, de fato.
Ainda vivemos a dura realidade do músico ter que bancar o equipamento de som, os ensaios e ter que dividir a bilheteria com a casa de show para realizar um evento, e ainda não ter parcela nenhuma no faturamento do bar; enfim, o que se paga nunca é uma coisa muito clara e, na maioria das vezes, o pagamento não cobre os custos da produção. São condições de trabalho que não atraem e não possibilitam que o profissional criativo tenha uma renda razoável, e isso deve ser uma preocupação de classe. Pois, além da satisfação pessoal do artista em ver o seu trabalho sendo aceito e rentável, a fim de ele conseguir criar mais, e em condições favoráveis para a criação, é preciso pensar em um legado mais atraente na cadeia produtiva da música que poderá ser deixado para uma geração futura. Muitos músicos quando alcançam o sucesso profissional esquecem de que podem contribuir para melhorar essa realidade da cadeia produtiva de sua terra natal ou, talvez, não se importem com isso ou mesmo não saibam como poderiam fazer isso. Mas, o que acontece, na prática, é que eles não dialogam com as gerações mais novas, às vezes, nem sabem quem são esses músicos e como estão as suas condições de trabalho. E isso cria um círculo vicioso em que bota em risco o trabalho de muitos que estão envolvidos com o ramo da música, pois, além dos próprios músicos, existem muitos técnicos e artistas de outras áreas que também estão envolvidos nas fases da produção musical, seja ela de um show, da gravação de um disco, de uma trilha sonora etc.
“(…) é preciso ter consciência de que o músico é um dos principais responsáveis por essa realidade.”
Para além das cenas, das estéticas, dos conceitos, das carreiras, a forma que podemos valorizar a diversidade cultural da cidade, do estado, da região, quiçá do país, e contribuir para um ambiente com menos dificuldades trabalhistas, não é resumida em uma única fórmula nem mesmo em um pacote de medidas que vai se encaixar perfeitamente em todos esses problemas existentes. Mas é preciso ter consciência de que o músico é um dos principais responsáveis por essa realidade. É uma das atividades mais antigas do mundo, mas que não consegue canalizar o poder que está cada vez maior com o fortalecimento da indústria cultural em todo o mundo – pois a cultura é o principal foco do projeto de globalização encabeçado pelos norte-americanos e pelos países europeus mais ricos, e isso não é novidade pra ninguém.
Mesmo assim, a classe artística, de um modo geral, não consegue deixar de se prostituir! As atividades são legalizadas e têm regulamentação, mesmo que estas sejam arcaicas, precárias e pouco conhecidas dos próprios profissionais da área. O sentido da prostituição levantado no texto seria ligado à dificuldade encontrada em articular políticas de classe. No caso dos/as profissionais do sexo, o problema se encontra na falta de regulamentos e da legitimação da prática trabalhista, que resulta em violência, calotes e marginalidade. Já no lado dos músicos, o problema é que não há um misto de ações coletivas, e que pode ser introduzido com duas reivindicações evidentes: práticas trabalhistas efetivas na relação entre empregado e empregador, em que o músico possa ter um contrato com piso salarial e a garantia do recebimento do valor acordado entre as partes, com um tempo razoável para o pagamento, e essa prática tem que estar aliada a um circuito sustentável, em que o artista possa ter uma renda, firmada na lei e na práxis do dia a dia, para assim ele subsistir e ser estimulado a permanecer na profissão. E quem vai exigir isso? Os produtores? Os jornalistas? Não dá para esperar que esses gargalos sejam resolvidos sem um esforço político da coletividade envolvida na causa, são muitos, mas o músico é o principal interessado nisso tudo, pode ter certeza! Deixemos as brigas estéticas para as apresentações, os discos e os ambientes da crítica, mas não façamos com que isso seja o ponto decisivo para criarmos grupos fragmentados que não conseguem enxergar coisas maiores para a classe e, muitas vezes, não percebem que lutam pelas mesmas causas. Isso faz com que a força política se dissipe e não possibilita a formação de representações organizadas e influentes.
“Não vamos cair na falácia de que artista só produz bem na marginalidade e na precariedade, nenhuma profissão merece esse estigma.”
Quantas cabeças foram e são perdidas para as profissões mais estabelecidas? São muitas as mentes criativas que desistem da empreitada por falta de uma perspectiva profissional, e eles não podem ser taxados como desertores, pois a realidade não é mole! Enfim, o sucesso das carreiras individuais é imprescindível em qualquer área de trabalho, ninguém é ingênuo para afirmar isso, mas não dá pra esquecer que a força coletiva de uma classe trabalhista traz benefícios a longo prazo e estruturais, além de deixar um legado essencial para uma possível sustentabilidade digna da profissão e das gerações futuras, que poderão ter mais ânimo e perspectiva no ambiente de trabalho, pois o fluxo de dinheiro é bem-vindo e garante o fortalecimento e a continuidade das atividades culturais. Não vamos cair na falácia de que artista só produz bem na marginalidade e na precariedade, nenhuma profissão merece esse estigma, isso é fetiche e não cabe na realidade prática do cotidiano, pra ser sincero, essa ideia nunca fez muito sentido!
por Ricardo Maia Jr.
O título do texto foi retirado do single do grupo britânico de pós-punk The Pop Group, lançado em 1979. É o nome que também intitula uma coletânea de retrospectiva compilada em 1998.
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